A desobediência civil na defesa dos direitos dos animais

AutorVanessa Moura Costa
CargoGraduada em Direito pela UFBA
Páginas315-357

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1. Introdução

A desobediência civil, amparada pelo direito de resistência, pode ser um importante instrumento na construção e modernização legislativa do Estado. Isto porque objetiva mudanças na sociedade de maneira a não provocar rupturas na sua estrutura. O desobediente civil busca denunciar a injustiça de uma lei, um ato político ou um costume da sociedade, sem, no entanto, desrespeitar a soberania estatal.

A prática da desobediência civil acontece com a infração direta da norma considerada injusta, ou de forma indireta, quando se desrespeita uma lei para demonstrar a injustiça de outra norma, ato ou costume. Assim, por esta estratégia, a desobediência civil implica mesmo em um ato muitas vezes criminoso.

Ocorre que essa transgressão justifica-se nos seus fundamentos. O desobediente civil irá atuar motivado por razões morais, impelido por sua consciência, ao acreditar que existe uma injus-

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tiça que deve ser reparada. A causa é a falta de justiça suportada por minorias sociais, que encontram neste instrumento o único meio efetivo para demonstrar a violação aos seus direitos e a necessidade de mudanças para o alcance do equilíbrio social e da dignidade.

A desobediência civil, no processo histórico da humanidade, serviu de canal para a concretização de direitos, tais como os direitos civis dos negros norte-americanos na década de 50. Neste momento atual, serve também para a reivindicação de proteção e justiça para um ente imprescindível para a sobrevivência humana: o meio ambiente. A mudança do paradigma antropocêntrico para o biocêntrico, motivado pela preocupação moderna em equilibrar o consumo humano com os limites impostos pelos recursos naturais, significou o reconhecimento de que a nature-za tem um fim em si mesma, não sendo meramente uma máquina construída para benefício do homem.

Frente a este panorama, em que se considera o meio ambiente como um organismo vivo e necessitado de proteção, encontrase um nicho especial: os direitos dos animais. Com efeito, estes seres foram relegados a meros objetos da exploração humana, sendo utilizados para alimentação, para vestuário, como instrumentos de trabalho e até mesmo para entretenimento. Foram e são submetidos a um tratamento cruel, na medida em que têm sua vida, liberdade e integridade física violadas.

Feitas estas considerações iniciais, chega-se ao objetivo do presente trabalho, que é analisar a desobediência civil na defesa dos direitos dos animais. Se um grupo de ativistas pratica um ato de desobediência civil em prol do Direito Animal, como deve o Estado se posicionar? Para melhor exemplificar, serão utilizadas situações hipotéticas: um grupo de ativistas na luta em defesa dos direitos dos animais invade um matadouro e ocupa o estabelecimento em um protesto coletivo, público e não-violento; ou, ainda, desobedece a ordens de autoridades policiais que ordenam o encerramento de uma manifestação. O Estado deverá punir os desobedientes, processando-os pelo crime de invasão

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de domicílio ou de desobediência, ou deve considerar como um movimento legítimo de desobediência civil, ainda que em prol de seres não-humanos, onde a prática de atos ilícitos pode ser tolerada tendo em vista as diferenças entre a desobediência civil e a atividade criminosa comum.

2. Entendendo a desobediência civil

Segundo José Carlos Buzanello1, a desobediência civil é espécie do gênero direito de resistência, ao lado da objeção de consciência, da greve política, do direito à revolução e do princípio da autodeterminação dos povos

Norberto Bobbio2elenca critérios para caracterização dos tipos derivativos do direito de resistência. Estes critérios seriam: resistência omissiva ou comissiva, que correspondem a não fazer o que é imposto, ou agir de forma proibida; individual ou coletiva, classificada de acordo com o número de agentes do ato desobediente, se feito individualmente, como é o caso da objeção de consciência, ou em grupo; clandestina ou pública, onde o autor traz como exemplos aquelas que acontecem em atentados anárquicos baseados na surpresa, ou aquelas que são ante-riormente anunciadas; pacífica ou violenta, ocorrendo a primeira quando realizada por meios não-violentos, característicos das greves em geral e a segunda, que acontece, sobretudo, em ações revolucionárias, com armas próprias ou impróprias; a voltada para a mudança de uma lei, de um grupo de normas ou a que objetiva a derrubada de todo o sistema estatal, como o movimento revolucionário; e, por fim, a resistência passiva ou ativa, sendo aquela que acontece violando-se apenas a parte preceptiva da norma, sendo preservada a submissão à parte punitiva desta norma, e esta, que sucede quando o agente ataca tanto a parte preceptiva quanto a parte punitiva da norma, esquivandose da sanção cominada.

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A desobediência sempre foi vista como um ato de desrespeito a regras, transgressão da lei. No entanto, há a desobediência na qual não se perde a fidelidade geral ao Estado3, pelo contrário, se procura demonstrar falhas ou injustiças na legislação ou nos costumes da sociedade. É praticada através de atos ilegais, mas públicos e pacíficos, executados sem violência. A is to reconhece-se como desobediência civil, onde o termo civil serve para demonstrar que o reconhecimento da supremacia do Estado e a observância da ordem jurídica são pressupostos para a sua legitimidade.

Hannah Arendt4afirma que a desobediência civil assoma quando um grupo numeroso de cidadãos se convence de que as vias utilizadas para alcançar as mudanças não funcionam, de forma que as queixas não são consideradas; ou, ainda, quando se está no momento eminente de transformações, mas o governo atua de forma tal que a legitimidade e constitucionalidade são passíveis de desconfiança. Observa a autora alemã que a desobediência civil serve tanto para pressionar por mudanças na legislação, como para preservar ou restaurar direitos já dispostos em leis positivadas e que estão sendo violados ou perdidos.

A desobediência civil, é, antes de tudo, um instrumento de luta. Como visto, se explica na resistência a leis, atos ou costumes que invadem direitos de minorias ou na demonstração da existência de lacunas na defesa destes mesmos direitos. Dessa forma conceitua Norberto Bobbio5.

Para o jurista italiano, a desobediência civil é uma forma particular de desobediência, porque carrega o objetivo imediato de demonstrar publicamente a injustiça da lei e o fim mediato de provocar o legislador a introduzir mudanças. Por este fato, é justificada por seus atuantes como lícita e obrigatória, devendo ser tolerada pelas autoridades públicas, ao contrário de outras transgressões. Assim, por se revestir de um caráter transformador da lei, a desobediência civil deve ser encarada como um instrumento inovador, e não destruidor.

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Professor Heron Santana Gordilho6, em palestra proferida na PUC do Rio de Janeiro, ensina que a desobediência civil difere do protesto por ação exemplar, como a greve de fome e o suicídio coletivo, porque neste, os atos não são ilegais. Aduz que os desobedientes atuam com objetivo de contrariar a lei, um ato ou costume, mas estão dispostos a aceitar a penalidade consequente. Assim, é imprescindível a ostensividade da vinculação entre seus atos e a razão moral que os leva a executá-los.

Desta forma, a desobediência civil pode ser indireta, ou seja, a ação desobediente pode processar-se de maneira a evidenciar que o objetivo é contrariar uma lei ou costume da sociedade, sem, no entanto, atingir diretamente o seu alvo de protesto7.

Hannah Arendt8entende ser desobediência civil indireta quando o contestador viola leis, sem, no entanto, achá-las passíveis de objeção em si, mas para contestar regulamentos injustos ou decretos e política do governo.

É assim que atuam os ativistas pró-direito animal. Quando realizam manifestações em estabelecimentos fast-food, que exploram e lucram com a venda da carne, estes cidadãos não estão propriamente impedindo o hábito alimentar carnívoro da população - um costume - mas fica evidente a causa que os motiva: a defesa do direito animal, que inclui a proteção à vida e à integri-dade física destes seres. Considerando que estes ativistas come-tam uma contravenção penal, conforme delineia-se a situação hipotética aqui colocada em estudo, como a prevista no art. 42 da Lei de Contravenções Penais - pertubação do trabalho ou sossego alheios - faria parte da sua atuação a submissão ao poder estatal. Os ativistas não se esquivariam de ser detidos e levados à delegacia, ou ainda processados pela prática de contravenção penal. O transgressor aceita a sua penalidade.

É de fundamental importância observar que a desobediência civil tem características únicas, que a diferenciam de outras posições que o cidadão possa assumir em relação a uma lei. Elencadas por Nelson Nery9, essas especificidades são o número de participantes, o caráter público e político do ato, a sua utiliza-

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ção como último recurso, a não violência, a sujeição às sanções, a ilicitude, a publicidade e as modificações normativas.

A primeira característica refe-se ao número de participantes. O ato de desobediência civil é um ato essencialmente coletivo, pelo fato de que um grupo exerce uma maior pressão no que se refere à busca por mudanças. É um conjunto de pessoas ligadas por uma linha de consciência em comum, por um compromisso mútuo, como diz Hannah Arendt. A autora afirma, ainda, que o contestador civil não existe isolado. Ele só pode funcionar e sobreviver como membro de um grupo10.

O movimento da desobediência civil somente pratica atos públicos, com o objetivo de demonstrar a...

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