De competência e incompetência: em busca da fundamentação perdida

AutorEugênio Pacelli de Oliveira
CargoProfessor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil
Páginas1-24

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Introdução

Se há um tema que não deveria reclamar a atenção de uma teoria do processo penal é aquele atinente à determinação da competência jurisdicional. Não porque não seja importante ou rico em conseqüências práticas; ao contrário, o reconhecimento de eventual incompetência sempre traz transtornos à atividade judiciária, implicando, invariavelmente, a repetição de atos processuais. No entanto, como se trata de matéria eminentemente técnica, cujos contornos normativos, via de regra, não apresentam maior complexidade na sua compreensão, não se justificariam, em tese, maiores incursões teóricas para a definição de seus alcances possíveis.

Porquê, então, problematizar a jurisdição e a competência no processo penal brasileiro? Onde residiria ou residiriam eventuais dificuldades na aplicação das regras processuais que cuidam da matéria?

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Ao que nos parece, a resposta à semelhante indagação não pode limitar-se à verificação da ampla divergência dos tribunais acerca de uma grande quantidade de questões pertinentes à competência jurisdicional. De fato, a desinteligência jurisprudencial, por si só, seria suficiente para justificar uma abordagem assim delimitada. Mas uma exploração mais profunda do tema somente será possível se for também possível uma ordenação racional dos fundamentos que determinaram as escolhas legislativas e até mesmo constitucionais.

É nosso propósito, então, levantar algumas questões acerca de determinadas orientações jurisprudenciais, com o objetivo de alinhar as estruturas subordinantes da interpretação em tema de competência jurisdicional, organizadas segundo seja o respectivo critério (lógico, teleológico, operacional etc.), no contexto da realização de uma das atividades mais complexas do Poder Público.

Contudo, nossos esforços não pretendem ir além do empreendimento editorial deste trabalho, limitando-se, portanto, a um esboço do atual sistema. Por isso, ou para isso, cuidaremos de trazer algumas decisões já dominantes na jurisprudência de nossos tribunais, sobretudo os Superiores, de modo a permitir uma confrontação das argumentações que fundamentaram os respectivos julgamentos, para o fim de se saber se há ou não coerência lógica, axiológica ou funcional entre elas. Passaremos em revista, então, alguns aspectos atinentes ao foro privativo por prerrogativa de função, à competência do tribunal do júri para os crimes dolosos contra a vida, e, finalmente, algumas regras referentes à competência territorial e, também, sobre a competência recursal constitucional.

I- Definições constitucionais: juiz natural ou de origem

Normalmente - e assim é nas Constituições Européias, por exemplo - as Cartas Políticas se limitam a prever e a fixar a competência dos tribunais superiores, ou, quando muito, reservam a possibilidade de criação, por Lei, de jurisdições especiais (federais, disciplinares, militares), para matérias específicas (Lei Fundamental Alemã, art. 96, por exemplo). Não é comum o estabelecimento, no textoPage 3 constitucional, de competências jurisdicionais de primeiro grau, como ocorre no Brasil.

Nesse contexto, o chamado juiz natural configura garantia individual contra a instituição de juízos ou tribunais de exceção, freqüentemente prevista nas Constituições do mundo ocidental (Constituição da Dinamarca, art. 61, por exemplo). Todavia, mais adequado à terminologia européia, por exemplo, seria a expressão juiz legal, na medida em que a determinação da competência jurisdicional é prevista em Lei e não na Constituição (Constituição da Áustria, art. 83, 2, por exemplo).

A Constituição da República, de 1988, como se sabe, também instituiu a garantia da vedação do juiz ou tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII). Mas, mais que isso, assegurou que ninguém será processado e nem sentenciado senão pela autoridade competente (art. 5º, LIII), o que levou a doutrina nacional a se referir a um juiz natural e não a um juiz legal.

Ocorre que, por força exclusiva de opção de política constituinte, o Poder Judiciário brasileiro recebeu ampla regulamentação na própria Constituição, a qual, não satisfeita com a criação da estrutura e das prerrogativas de seus membros, resolveu também promover, ali mesmo, ao nível constitucional, a repartição de competência jurisdicional de determinados juízos e tribunais. Com isso, e depois de distribuir a jurisdição dos tribunais, declinando-se a competência recursal e originária (foro privativo por prerrogativa de função, habeas corpus, mandado de segurança etc.), o constituinte, no ponto em que criava (na verdade, recebia da ordem jurídica então vigente) diferentes órgãos do Poder Judiciário, atribuía a cada um deles determinada competência em razão da matéria, com o que o conceito de juiz natural, para além de significar a vedação do tribunal de exceção, passou também a exigir o julgamento por juiz materialmente competente. E porque foi a Constituição da República a responsável pela distribuição de competência por matéria – e também por prerrogativa de função – a autoridade judicante competente deve ser aquela ali escolhida, na origem da repartição de competência, donde poder se falar em um juiz constitucional.

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Configuram, portanto, juiz constitucional (ou natural) em matéria penal, o Juiz Federal (art. 109, C.R.), o Juiz Eleitoral (art. 121, C.R.), o Juiz Estadual (art. 125, C.R.), o Juiz de Direito Militar, para os crimes militares cometidos contra civis (art. 125, §5º, C.R.), a Justiça Militar, para crimes militares definidos em Lei (art. 124, parágrafo único, C.R.), bem como os órgãos de segunda instância e os tribunais superiores nas hipóteses de foro privativo por prerrogativa de função (competência penal originária, arts. 96, 102, 105, 108, C.R.).

Eis porque já se levanta um primeiro problema: se a definição da repartição de competência jurisdicional é feita na Constituição do Estado Federal brasileiro, porque se admitir atribuição aos constituintes estaduais para também definir matéria referente aos foros privativos por prerrogativa de função, em relação à determinadas autoridades (cargos e funções) estaduais, como vem decidindo o Supremo Tribunal Federal (ADI 2.587/GO, Rel. Maurício Corrêa (vencido)?

I-a) competência legislativa concorrente e extensão de foro

De fato, alterando entendimento jurisprudencial até então prevalecente, a Suprema Corte, no julgamento da mencionada ADI 2.587/GO, entendeu possível, nas Constituições dos Estados, a instituição de foro privativo por prerrogativa de função, no Tribunal de Justiça, à diversas funções e autoridades do Poder Público Estadual, nomeadamente os Procuradores dos Estados, da Assembléia Legislativa, bem como os Defensores Públicos, funções estas não contempladas na Constituição da República. O fundamento da aludida decisão parece residir na importância das mencionadas funções no quadro daquelas essenciais ao Estado Democrático de Direito.

Bem. Tanto a conclusão final quanto a argumentação desenvolvida, com o devido respeito aos doutos membros da Suprema Corte, não nos parecem sustentáveis. Em primeiro lugar, registre-se que não teríamos dúvida alguma em reconhecer na Defensoria Pública, dos Estados e da União, o exercício de funções essenciais ao Estado Brasileiro, particularmente no que diz respeito ao correto funcionamento e administração da Justiça. De outro lado, o fundamento utilizado para o afastamentoPage 5 dos Delegados de Polícia (a Constituição goiana previa o foro privativo também para os Delegados de Polícia) seria mais que suficiente para afastar também os cargos de Procuradores do Estado e da Assembléia Legislativa, já que todos eles estão administrativamente subordinados às respectivas Chefias (do Executivo e do Legislativo estaduais), não se incluindo, rigorosamente, no que se convencionou denominar agentes políticos do Estado brasileiro.

Entretanto, não é essa a questão essencial a ser analisada.

Trata-se, ao contrário, de se saber qual autoridade legislativa teria sido escolhida para identificar as funções essenciais ao Estado Democrático de Direito. Visto que a escolha, óbvia, teria recaído no poder constituinte do Estado Brasileiro, que, minudentemente, apontou os foros privativos e a relevância das respectivas funções, restaria indagar se o referido Poder teria delegado a mesma função, ao nível estadual, aos constituintes dos Estados. Essa parece ser a verdadeira questão, já que o constituinte, inegavelmente, emitiu juízo de valoração acerca da simetria de relevância de um grande número de funções, na medida em que estabeleceu regra de equivalência segundo a instância do Judiciário (Presidente da República com foro no Supremo Tribunal Federal, Governadores com foro no Superior Tribunal de Justiça, Prefeitos nos Tribunais de Justiça etc.)

Então, onde estaria a alegada delegação?

Evidentemente, não se há de exigir norma expressa para justificar a aplicação de determinada compreensão constitucional, sabido que, no âmbito da hermenêutica constitucional, há princípios e poderes também implícitos.

Uma passagem d’olhos na Constituição de 1988 nos conduzirá, por primeiro, ao art. 25, no qual se estabelece que os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição. E, ao parágrafo primeiro (§1º), a dizer que são reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição.

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Primeira observação: As Constituições estaduais devem observância aos princípios constitucionais da Carta...

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