A Natureza Jurídica dos Tribunais de Contas no Brasil

AutorRenato Luís Bordin de Azeredo
Páginas156-170

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Introdução

O presente artigo tem por objetivo demonstrar a evolução jurídico-constitucional acerca da natureza jurídica dos Tribunais de Contas no Brasil, imprescindíveis órgãos de controle externo das contas públicas. Nesse sentido, pretende-se realizar um exame dos dispositivos da Constituição Federal do Brasil interpretados pelo Supremo Tribunal Federal. Também será realizado, en passant, um exame da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e do Superior Tribunal de Justiça. Ademais, será realizada uma breve abordagem a respeito do sistema de controle na Argentina, tanto em nível federal, como nas províncias.

A divisão horizontal do Poder, na atual socie-dade, não se ajusta mais à doutrina aperfeiçoada no século XVIII, por Locke e Montesquieu, que se refletiu na origem do constitucionalismo.

Quando de sua elaboração, a sociedade sequer cogitava dos direitos de segunda dimensão, que vieram a transformar radicalmente a atuação do Estado, em especial, do Poder Executivo, que, de garantidor das liberdades, passou a ser ator principal na realização de políticas públicas a fim de realizar as novas tarefas que passaram a ser do Estado.

A partir de então, surgiram os direitos de terceira e quarta dimensões, ou até mesmo de quinta, como sustentam alguns autores. O que importa neste momento é perceber que os fundamentos da teoria que levou àquela conformação estatal e de divisão horizontal do Poder não mais permitem que sejam atendidos os anseios sociais de liberdades e garantias ante o abuso do Poder.

É por isso que as Constituições modernas, apesar de manter em seus textos, de forma formal, aqueles preceitos, criam uma série de órgãos que passam a executar tarefas primordiais de defesa e realização dos direitos fundamentais, com todas as garantias e prerrogativas dos Poderes até então constituídos, sem qualquer relação de subordinação ou submissão a qualquer dos tradicionais Poderes conhecidos.

Uma dessas Instituições, no Brasil, são os Tribunais de Contas, que, assim como se deu com o Ministério Público, tiveram uma ressignificação a partir da Constituição Federal de 1988, com um grande incremento de atribuições, passando a uma posição sobranceira na nossa Federação, como se verá adiante.

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1. Uma breve abordagem a respeito da separação de poderes e sua ressignificação diante das transformações sociais, culturais, políticas e teóricas a partir de sua formulação inicial

O contexto em que foi formulada a Teoria da Separação de Poderes modificou-se ao longo dos anos. Na sua origem, se voltava contra o absolutismo. O que visava inicialmente era garantir a liberdade por uma divisão horizontal do Poder, de suas funções, a fim de assegurar uma maior liberdade.

Com o passar dos anos, o Estado se modificou completamente. Enquanto na sua origem pretendia-se que fossem asseguradas as liberdades, os direitos civis, com uma abstenção do Estado de participar de áreas onde não devia, deixando prevalecer a liberdade entre os indivíduos, percebeu-se que esta liber-dade entre desiguais causava profundas injustiças, a ponto de ser cunhada uma frase por Lacordaire: "Entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta."1

A toda evidência que o desenvolvimento industrial, somado a uma série de outras mudanças sociais, passou a exigir cada vez mais a participação do Estado, mudando radicalmente a sua conformação. Agora, com o advento dos direitos de segunda dimensão, que sequer eram cogitados quando da formulação inicial da teoria da separação de poderes, o Executivo passa a ter um papel preponderante, de executor de tarefas públicas essenciais.

Pode-se se perceber melhor essa modificação do Estado na seguinte passagem de artigo de Couto e Silva2:

Ainda nesse quadro, dominado pelas concepções liberais, não seria demasiada ousadia afirmar que o direito público exercia um papel puramente instrumental com relação ao direito privado, do mesmo modo como o Estado é um instrumento para garantir o bem-estar da sociedade como um todo e, consequentemente, propiciar a felicidade dos indivíduos.

O Estado Social, entratanto, rompeu com a rígida dicotomia entre Estado e Sociedade ao atribuir ao Poder Público o papel de cooperar na formação do próprio corpo social, intervindo nas relações econômicas e sociais para aproximá-las o mais possível da Justiça material.

Há um rompimento com todas as bases que ensejaram a formulação inicial da teoria da separação dos poderes só com o advento dos direitos de segunda dimensão. O que se dirá então com as demais dimensões ou gerações que decorreram do curso da história? Por esta razão, a teoria deve ser reformulada.

O que se visa com a teoria da separação de poderes é o impedimento do seu abuso. Não é uma teoria fechada, portanto. Os seres humanos tendem a abusar do Poder. As mudanças sociais ensejam que seja reformulada esta teoria para que se ajuste às novas realidades, aos novos desafios que tem a enfrentar. A matéria foi objeto de profunda análise por Häberle, como pode se aferir na seguinte passagem de sua obra:

El principio de la división de poderes es tanto "texto clásico" desde Montesquieu (1748), como también principio constitutivo en la tríada del Legislativo, el Ejecutivo y el Judicial del tipo del Estado constitucional, y viene a ser derecho constitucional positivo en todos los ejemplos y variantes nacionales. Entre los tres planos e formas de manifestación hau múltiples traslapes y fecundaciones mutuas. El derecho constitucional positivo de muchos países ha creado en la atualidad algunos órganos constitucionales nuevos (como el comisionado ciudadano o el ombudsman), que deben ser incorporados en el cuadro conjunto del equilibrio de poderes, del mesmo modo que la jurisdición constitucional, que se ha fortalecido, ha encontrado paulatinamente su "lugar correcto" en el cuadro conjunto de un Estado Constitucional. El texto clásico inspirador sigue siendo la obra de Montesquieu, De l’espirit des lois, en cuyo libro XI, cap. 4, se lee: ‘La experiencia eterna enseña, sin embargo, que todo hombre que tiene poder se ve impulsado a abusar de él.’

Esta imagen realista del ser humano en relación con el agudo peligro permanente de que los hombres abusen del poder, no sólo en

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los cargos políticos o del Estado, conduce actualmente a la lucha constitucional por una división óptima de los poderes, y el renovado retorno creador al ‘texto original’ de Montesquiel (y de Locke) puede reconocer y combatir nuevas zonas de peligro del abuso de poder. Dicho en otras palabras: la división de poderes es un principio relativamente abierto, con constantes e variantes.3

É dentro desta concepção de Häberle que devem ser vistos os novos órgãos autônomos constitucionalmente criados a fim de exercer parcelas da soberania nessa nova concepção de divisão do Poder decorrente dos desafios da sociedade moderna. Como asseverado pelo autor, a divisão de poderes, dentro de sua lógica concebida, é um princípio relativamente aberto e que deve se ajustar às exigências de cada sociedade.

Os Constituintes, sensíveis a isto, criaram uma série de instituições no texto constitucional, assegurando-lhes as garantias e as prerrogativas que até então eram atribuídas aos clássicos poderes concebidos. Isto se deu com os Tribunais de Contas e o Ministério Público no Brasil, que possuem as mesmas prerrogativas e garantias de membros do Poder Judiciário, a fim de conformar essa nova forma de combater as tentativas de abuso do Poder e criar uma sociedade justa e solidária.

A confirmação desta afirmação pode ser verificada na seguinte passagem da obra citada:

Debe hacerse notar que se ha multiplicado el número de poderes en el marco de los procesos sociales de crecimiento del Estado social. Así, en numerosos Estados constitucionales hay tribunales de cuentas (también el Banco Federal Alemán, actualmente el Banco Central Europeo), que se aproximan a los tribunales en su status independiente (cfr. El art. 100, incs. 1 y 2, Const. de Italia); así se han desarrollado "ombudsman" o formas próximas, como los comisionados para las fuerzas armadas (wehrbeauftragte; art. 45 b, LF) [...]

Portanto, há uma multiplicação de poderes decorrentes do marco dos processos de crescimento do Estado social.

Ademais, os Tribunais de Contas, dentro de suas atribuições, além da emissão de decisões, auxiliam sobremaneira à sociedade no exercício do controle social, disponibilizando os dados que são obrigatoriamente fornecidos pelos órgãos fiscalizados.

Bercholc demonstra que a ausência de transparência afeta diretamente a democracia e a igualdade de oportunidade, conforme se afere a seguir:

9. El control y la transparencia de la financiación de la actividad política

Los mecanismos de control de la financiación de la actividad política resultan vitales para el control del poder. Así se provee a la democracia y a la igualdad de oportunidades pues sino, la opacidad en este rubro, promueve la corrupción, clientelismos diversos, fenómenos pluto-cráticos y otros desmadres para la calidad institucional y el control de la actividad política.4

Por conseguinte, resta claro a importância dessa instituição no exercício de um controle direto sobre as contas públicas, bem como em auxílio ao exercício do controle social, possibilitando aos cidadãos acesso imediato a um banco de informações.

2. A adequada configuração jurídico-constitucional dos tribunais de contas na interpretação do supremo tribunal federal

No Brasil...

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