Natureza jurídica da obrigação natural legal nature of natural obligation

AutorAmanda Gouvêa Toledo Barretto
CargoAdvogada. Pós-graduanda em Direito dos Mercados Financeiro e de Capitais pelo Insper Instituto de Ensino e Pesquisa. Graduada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP
Páginas206-234
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NATUREZA JURÍDICA DA OBRIGAÇÃO NATURAL
LEGAL NATURE OF NATURAL OBLIGATION
Amanda Gouvêa Toledo Barretto1
RESUMO
A obrigação natural é um dos temas mais controvertidos do Direito Civil, sendo objeto de
fortes divergências doutrinárias. Por se tratar de um instituto bastante antigo, a obrigação
natural foi considerada, durante algum tempo, como ultrapassada e pouco relevante. Todavia,
recentemente essa figura voltou a ganhar destaque, no âmbito dos debates acerca da possível
classificação dos instrumentos financeiros derivativos – contratos cujo valor deriva da cotação
de uma variável subjacente – como jogo ou aposta. O assunto também esteve em foco na
discussão do Projeto de Lei do Senado n° 186, de 2014, que dispõe sobre a exploração de
jogos de azar no território nacional. O presente artigo analisa a obrigação natural no Direito
brasileiro contemporâneo, explorando as teorias acerca de sua natureza jurídica e concluindo
que a forma mais adequada de classificá-la é como uma obrigação essencialmente civil que,
por razões de política legislativa, não recebe tutela do Estado.
PALAVRAS-CHAVE: Obrigação natural; Natureza jurídica; Jogo e aposta.
ABSTRACT
Natural obligation is one of the most controversial themes in Civil Law, and there is
significant doctrinaire divergence involving it. Since it is an ancient institute, natural
obligation used to be considered outdated and irrelevant. However, it recently returned to the
spotlight, in the debates regarding the possible classification of derivative financial
instruments – contracts which value derives from the quotation of an underlying asset – as a
wager. The Senate Bill no. 186, of 2014, which addresses gambling in Brazil, has also
highlighted such subject. In this paper we analyze natural obligation in the contemporary
Brazilian Law, by exploring the multiple theories regarding its legal nature. We conclude that
it essentially consists of a civil obligation which, for legislative policy reasons, is not
protected by the State.
KEYWORDS: Natural obligation; Legal nature; Wager.
1 INTRODUÇÃO
A obrigação natural constitui o objeto de vários capítulos de extensas obras, de
inúmeros artigos, de teses inteiras. As discussões envolvem todos os aspectos do instituto,
1 Advogada. Pós-graduanda em Direito dos Mercados Financeiro e de Capitais pelo Insper Instituto de Ensino e
Pesquisa. Graduada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP.
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desde a incerteza de seus efeitos jurídicos até a própria negação de sua existência. Esse é,
claramente, um dos assuntos mais controvertidos do Direito Civil das Obrigações.
As divergências sobre a figura existem há milhares de anos e, ainda hoje, uma teoria
uniforme apresenta-se longe de ser consolidada. Iniciam-se as discordâncias na própria
essência do instituto, já que não há uma posição pacífica a respeito de sua natureza jurídica.
É verdade que tal modalidade obrigacional restringe-se, no Direito moderno, a poucas
situações concretas. Devido à grande e evidente perda de aplicabilidade, havia até mesmo
quem a considerasse ultrapassada e situada em sentido oposto ao das mudanças sociais.2
Contudo, recentemente, a obrigação natural voltou a ser abordada, em virtude dos debates
legislativos e doutrinários sobre a classificação dos derivativos3 como jogo ou aposta – e,
consequentemente, sobre a pertinência da aplicação, a tais contratos, da disciplina jurídica que
rege os institutos em questão.4 O tema também ganhou destaque com a discussão do Projeto
de Lei do Senado n° 186, de 2014, que dispõe sobre a exploração de jogos de azar no
território nacional. Dessa forma, a necessidade de definições a respeito da obrigação natural
voltou a ficar evidente.
O presente artigo visa a tornar mais claros os traços do instituto. Para tanto,
inicialmente, são expostos os traços básicos da obrigação natural e discorre-se sobre a
inexistência do dever de prestar e a consequente inexigibilidade de seu adimplemento.
2 BARROS MONTEIRO, W. de. Curso de Direito Civil: Direito das Obrigações. 33ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.
216.
3 Derivativos são instrumentos financeiros para gestão de risco, conforme CAPALDO, G. (Profili Civilistichi del
Rischio Finanziario e Contratto di Swap. Milan o: Giuffrè, 1999. p. 46-47). De acordo com a Comissão de
Valores Mobiliários (Mercado de Valores Mobiliários Brasileiro. Rio de Janeiro: 2013. p. 282.), consistem em
contratos celebrados a prazo com liquidação futura, cujos valores derivam de uma variável mais básica, à qual
eles estão vinculados, como ressalta HULL, J. (Options, Futures and Other Derivatives. 6ª ed. New Jersey:
Prentice Hall, 2006. p. 1). Os montantes devidos em função de um derivativo, assim, modificam-se ao longo do
tempo, de acordo com os valores daquilo que é tom ado como referência.
4 Os artigos 1.477 a 1.479 do Código Civil de 1916 determinavam: “Art. 1.477. As dividas de jogo, ou aposta,
não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha
por dolo, ou se o perdente é menor, ou interdito. Parágrafo único. Aplica-se esta disposição qualquer contrato
que encubra ou envolva reconhecimento, novação ou fiança de dividas de jogo; mas a nulidade resultante não
pode ser oposta ao terceiro de boa fé. “Art. 1.478. Não se pode exigir reembolso do que se emprestou para jogo,
ou aposta, no ato de apostar, ou jogar. “Art. 1.479. São equiparados ao jogo, submetendo-se, como tais, ao
disposto nos artigos antecedentes, os contratos sobre títulos de bolsa, mercadorias ou valores, em que se estipule
a liquidação exclusivamente pela diferença entre o preço ajustado e a cotação que eles tiverem, no vencimento
do ajuste”. A possibilidade de incidência do artigo 1.479 sobre os contratos derivativos gerou muita polêmica. O
debate iniciou-se pelo questionamento da própria vigência do artigo e estendeu-se à interpretação conferida ao
dispositivo. Diante das discussões, operou-se significativa mudança nas disposições legais acerca do assunto.
Assim, o artigo 816 do Código Civil de 2002 adotou posição oposta à do artigo 1479 do Código Civil de 1916,
determinando: “As disposições dos arts. 814 e 815 não se aplicam aos contratos sobre títulos de bolsa,
mercadorias ou valores, em que se estipulem a liquidação exclusivamente pela diferença entre o preço ajustado e
a cotação que eles tiverem no vencimento do ajuste”. Eliminou-se, então, a equiparação ao jogo e à aposta dos
contratos diferenciais sobre títulos de bolsa, mercadorias ou valores.

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