Natureza jurídica da ação

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Páginas33-49

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Várias teorias surgiram acerca da natureza jurídica da ação. Vejamos as principais delas.

Teoria civilista

A doutrina do direito romano — tendo em Celso um dos seus preeminentes representantes — concebia a ação como o direito de postular em juízo o que fosse devido (actio nihil aliud est quam ius persequendi in iudicio quod sibi debeatur); em virtude disso, ação e processo eram considerados simples capítulos do direito material, sem que lhes fosse reconhecida qualquer autonomia científica.

Mais tarde, juristas de diversas nacionalidades — embora sob acentuada influência da concepção romana — empenharam-se na investigação a respeito da natureza jurídica da ação. Resultado dessa intensa prospecção doutrinária foi o surgimento da teoria (ou escola) civilista (também dita clássica, ou ima-nentista), que encontrou em Savigny o seu agente de difusão e de consequente consolidação. Em breve tempo, a grande maioria dos pensadores aderiu a essa doutrina, dentre os quais alguns brasileiros, como foi o caso de João Monteiro.

De acordo com a teoria em foco, a ação representa o próprio direito material em estado de reação a uma violência, já concretizada ou na iminência de vir a ser; por outros termos, a ação fica reduzida à mera qualidade do direito substancial. Em decorrência da profunda infiltração dessa doutrina no pensamento de quase todos os juristas da época, os conceitos de ação, que estes vieram a formular, conduziam a certas conclusões comuns, que podem ser assim sintetizadas: 1) inexiste ação sem direito material; 2) não há direito sem ação que o assegure; 3) a ação se subordina à natureza do direito material lesado ou ameaçado.

É certo que cada jurista procurou deixar a marca de sua individualidade ao enunciar uma opinião acerca da natureza jurídica da ação, conquanto permanecesse a uni-los o princípio medular de que a ação estava umbilicalmente ligada ao direito material, que lhe dava — por assim dizer — expressão jurídica. Daí por que Savigny definiu a ação como o direito substancial a movimentar-se em consequência da violação sofrida; para Vinnius ela representava o direito material em estado de guerra, reagindo contra a ofensa ou a ameaça; Mattirolo a

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considerava uma posição assumida pelo direito; Filomusi Guelfi, por seu turno, identificava na ação uma propriedade, elemento, qualidade, função, anexo do direito material, ou seja, mantinha a posição central da doutrina civilista, aos olhos da qual a ação surge como o próprio direito subjetivo material assumindo uma atitude de reação a um constrangimento.

Ao dispor, a propósito, em seu art. 75, que "A todo direito corresponde uma ação, que o assegura", o Código Civil Brasileiro de 1916 demonstrava haver incorporado a doutrina civilista da ação, sendo proveitoso ressaltar que o citado Código, instituído pela Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, entrou em vigor a 1º de janeiro do ano seguinte (art. 1.806), sendo, posteriormente, revogado (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002). O novo Código não repetiu a norma contida no anterior.

Essa teoria, contudo, acabou — em virtude do amadurecimento das reflexões sobre o tema — recebendo duras objeções, na medida em que ficava a dever uma explicação juridicamente razoável diante de certas indagações, como qual teria sido o direito de o autor provocar o exercício da função jurisdicional do Estado quando a sentença viesse a declarar que não possuía o direito alegado. Com efeito, se, na linha de entendimento da doutrina civilista, a ação nada mais representa do que um reagir do direito a uma lesão ou ameaça, como justificar que o autor teve, na hipótese, ação sem possuir o "correspondente" direito material? A mesma dificuldade lógica é enfrentada por essa teoria em face das ações declaratórias negativas, cuja finalidade é, caracteristicamente, obter um provimento jurisdicional declarativo da inexistência do direito material ou da relação jurídica. Tais ações ainda estão presentes nos ordenamentos processuais modernos, como revela o art. 4º do nosso CPC, em que o interesse do autor pressupõe exatamente a inexistência de relação jurídica.

Em meados do século XIX — precisamente em 1856 — Bernard Winds-cheid, professor na Universidade de Greifswald, publica a sua obra "A ação no direito romano sob o ponto de vista do direito atual", que viria a provocar famosa cinca com Theodor Müther, professor na Universidade de Kõnisberg, quanto ao conceito da actio no direito romano e seu desenvolvimento no plano do direito contemporâneo.

Em seu livro, Windscheid empenhou-se, basicamente, em: a) demonstrar a profunda diversidade entre os sistemas jurídicos de Roma e os do mundo moderno, considerando que aquele era um sistema de actiones, razão por que somente por intermédio da actio é que se poderia chegar ao ius; b) traduzir, em linguagem avançada, os termos romanos relativos ao mencionado sistema; c) opor-se à comparação, feita pelos estudiosos modernos, entre a actio e a ação atual.

Chega Windscheid à conclusão de que a actio romana constitui um fenómeno que é representado, no direito contemporâneo, pela denominação Ans-pruch ("pretensão") consistente na "faculdade de impor a própria vontade em via

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judiciária". Informa Pugliese que o conceito de Anspruch, formulado por Winds-cheid, foi introduzido no Código Civil alemão (BGB, § 194), na parte referente à prescrição da pretensão (in "Introduzione intorno alVactio", Betti, Ragione e Azione, pág. 206, nota 3).

A obra de Müther ("Zur lehre von der romischen Actio, dem heutigen Klagerecht, der litiscontestation und der Singularsucession in Obligationem"), escrita em 1857, se caracteriza por três aspectos essenciais: 1) tentativa de reaproximar os conceitos romano e moderno de actio e ação; 2) declaração de que o sistema romano o ius tinha preeminência em relação à actio; 3) a definição da actio segundo o direito à tutela jurídica, em que era titular passivo o magistrado e não o adversário.

Em suma, para Müther a ação se diferençava do direito subjetivo material tanto pela diversidade do sujeito passivo quanto pelo fato de existirem direitos não protegidos pela ação. Ao contrário de Windscheid, sustentou que o ordenamento jurídico romano não era um sistema de ações e sim de direitos, à feição dos sistemas jurídicos contemporâneos.

No mesmo ano, Windscheid dá a público outra obra, sob o título "A actio — réplica a Th. Müther", na qual reafirma o pensamento exposto no livro anterior; esse trabalho encerra a disputa, ardentemente travada, entre os dois juristas.

Na observação de Chiovenda, essa polêmica, embora não tenha conduzido a resultados definitivos — porquanto as discussões que dela se irradiaram não conseguiram aclarar de todo o assunto — teve o indiscutível merecimento de suscitar um amplo e profundo debate em um campo em que quase tudo estava para ser desbravado ("La acción en el sistema de los derechos", in "Ensayos de Derecho Procesal Civil", vol. I, trad. argent., pág. 3 e segs.).

É correto afirmar-se, de outro ângulo, que a cizânia surgida entre os dois ilustres romanistas alemães revelou que o direito material e a ação possuem conteúdos próprios, inconfundíveis, o que representou, sem dúvida, um grande progresso dos estudos doutrinários respeitantes à ação.

Para Müther, v.g., a ação consistia no direito de obter a tutela jurisdicional do Estado, cujo exercício era reconhecido a quem houvesse sofrido alguma lesão de direito. A contar daí, ele fixou o seu entendimento quanto a ser a ação um direito que se exerce contra o Estado, ao qual o indivíduo invoca a tutela jurisdicional. Apresenta-se a ação, desse modo, como um direito público subjetivo, desvinculado de qualquer direito material. O pensamento de Müther rompeu com a doutrina civilista da ação, que, como vimos, sustentava ser esta simples manifestação do direito substancial.

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Teoria da ação como direito concreto

Em 1885, Adolfo Wach, influenciado pela doutrina de Müther, dá a lume a sua importante monografia a respeito da ação declaratória; esse trabalho — que se tornou célebre — é apontado como a mais notável contribuição ao advento da moderna teoria do processo; o próprio Wach é considerado um dos fundadores do direito processual contemporâneo.

Na obra, o grande jurista demonstrou ser a ação um direito autónomo, sem qualquer liame com o direito material que ele acaso vise a proteger; a ação não pressupõe, consequentemente, a existência de um direito material, que constituiria a sua razão de ser. Dentro dessa construção, Wach póde argumentar com a ação declaratória negativa, cujo objetivo reside, precisamente, na obtenção de um provimento jurisdicional que diga da inexistência da relação jurídica ou do direito substancial aventado. Dessa forma, se o que o autor deseja conseguir, em tal tipo de ação, é uma declaração jurisdicional quanto à não-existência do direito material, como se poderia afirmar que a ação estaria a proteger um direito que inexiste?

Podemos afirmar, diante disso, que o argumento de Wach — lastreado na ação declaratória negativa — deitou por terra, em definitivo, a teoria civilista da ação.

Na óptica de Wach, a ação era dirigida contra o Estado e contra o adversário, com o intuito de conseguir a tutela jurisdicional. Contra o Estado, porque este se situa na obrigação indeclinável de administrar justiça; desse posicionamento estatal o renomado jurista tira a conclusão de que a ação assume foros de direito público subjetivo. Para ele, entretanto, a tutela jurisdicional deve ser consubstanciada em uma sentença favorável ao autor, a expressar que o direito de ação fica na dependência do atendimento de certos requisitos de direito material, como as condições da ação, e de direito formal, como os pressupostos processuais; segue-se, que...

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