Competência da Justiça do Trabalho nas contratações irregulares do poder público segundo uma inetrpretação jurídica e política, voltada para o cidadão

AutorViviann Rodriguez Mattos/Douglas Santana Moreira
CargoProcuradora do Trabalho ? MPT/PRT 2ª Região (São Paulo)/Bacharel em Direito pela Universidade São Paulo ? USP
Páginas86-105

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1. Introdução

O advento da Emenda Constitucional n. 45, de 8.12.2004, deu início a uma ampla reforma de estruturas e processos do Poder Judiciário, como meio de realizar a promessa democrática, assentada na Constituição, de acesso a uma ordem justa, a partir da garantia de tutela jurisdicional assegurada aos cidadãos1.

Ao lado das alterações que, em concreto, tendem a produzir efeito no mais famoso e grave mal que atinge o Judiciário — a morosidade —, realça no novo texto constitucional a disciplina pedagógica da competência atribuída à Justiça do Trabalho, visando, no aspecto técnico, a correção da inexplicável competência da Justiça Comum para julgar ações envolvendo direito de greve (ações possessórias: manutenção de posse — turbação —, reintegração de posse — esbulho —, interdito proibitório — em caso de justo receio de violência iminente que possa molestar ou esbulhar a posse; ou ações indenizatórias no caso de greve abusiva) no inciso II, ou entre entidades sindicais (representação sindical; arrecadação ou rateio das receitas sindicais: contribuição confederativa, sindical, assistencial e mensalidade do associado) no inciso III, ambos do art. 114 da CRFB.

Sob o aspecto social, a Reforma do Judiciário procurou promover uma adequação da competência da Justiça do Trabalho, a fim de contemplar aqueles que outrora se encontravam fora de sua competência — que se limitava às pessoas do trabalhador-empregado e empregador —, ante ao reconhecimento de que a relação de emprego está a cada dia mais perdendo sua identidade, em decorrência da multifária dinâ-mica do sistema capitalista de produção.2

Disso se percebe que a justificativa para a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, por força da Emenda Constitucional n. 45/ 2004, não se traduziu em um simples redimensionamento da jurisdição estatal, mas, ao contrário, teve por mira oferecer ao jurisdicionado, na seara do direito que envolve o trabalho humano, uma estrutura judiciária especializada capaz de solucionar mais rapidamente a demanda levada a Juízo.

Não obstante, essa ampliação causou fervorosas discussões, não só antes da promulgação da emenda constitucional, mas, sobretudo depois, mediante o ajuizamento de ações diretas de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal, questionando-se os limites da competência da Justiça do Trabalho diante das históricas atribuições de outros ramos do Poder Judiciário.3

Interessa-nos para este breve estudo a discussão na Suprema Corte sobre a competência

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da Justiça do Trabalho para apreciar e julgar ações envolvendo as relações de trabalho na administração pública, em razão da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.395, proposta pela Associação dos Juízes Federais (AJUFE), tendo como objeto a nova redação dada pela referida Emenda Constitucional ao art. 114, I, da Constituição Federal.

A preocupação com o tema se justifica porque, ao longo dos quase 4 (quatro) anos da concessão da liminar na MC-ADI n. 3.3954 — notadamente após o julgamento da Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.1355 —, percebe-se nas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas Reclamações6, fundamentadas na MC-ADI n. 3.395, uma tendência de reformulação interpretativa desta, de modo a tornar a restrição à competência da Justiça do Trabalho muito mais ampla do que a adotada originariamente na liminar.

Este artigo se propõe a discutir a aplicação da decisão proferida na MC-ADI n. 3.395, no que diz respeito à competência da Justiça do Trabalho nos casos em que se questionam as contratações irregulares feitas pelo Estado, sob uma perspectiva voltada para o cidadão, trazendo à tona circunstâncias que, embora relevantes, não têm sido alvo de análise quando se tem em mente um eventual deslocamento de competência da justiça laboral.

Essa tarefa seguirá dois caminhos. Em um primeiro momento, buscar-se-á demonstrar o desenvolvimento das teses adotadas pelo STF em suas decisões sobre o tema, e, sucintamente, suas implicações. Posteriormente, serão apresentados argumentos jurídicos e políticos, buscando-se, com eles, a partir de uma interpretação constitucional concretista sobre a definição das competências jurisdicionais, apresentar uma singela contribuição à efetivação de um Poder Judiciário (e dos demais órgãos essenciais à realização da Justiça) que ofereça qualidade, eficácia, efetividade, economia e, sobretudo, celeridade na prestação jurisdicional, de modo a traduzir em provimentos práticos aquilo que a ideologia da Carta Magna assegura aos cidadãos em termos de tutela jurisdicional.

2. Desenvolvimento das teses interpretativas adotadas pelo STF nas questões envolvendo competência jurisdicional da Justiça do Trabalho após a Constituição/88 e suas implicações

Desde a promulgação da Constituição de 1988, ocorreram problemas quanto à definição da

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competência jurisdicional para julgar as ações referentes às relações de trabalho na administração pública, notadamente quando do advento da Lei n. 8.112/1990, disciplinando, após a rejeição do veto presidencial, o art. 240, alíneas d e e, a matéria, no que concerne aos funcionários públicos federais.

O Supremo Tribunal Federal, em sessão realizada em 19.7.1991, apreciando liminarmente a Ação Direta de Inconstitucionalidade
n. 492-1/DF, suspendeu a alínea d e as expressões “e coletivamente” contidas na alínea e do referido artigo, de sorte que subsistiram as disposições pertinentes ao ajuizamento, frente à Justiça do Trabalho, pelos funcionários federais, de dissídios individuais.

Em 12.11.1992, em decisão definitiva de mérito, a Corte Suprema julgou referida ADI procedente, por maioria, declarando a inconstitucionalidade das alíneas d e e, do art. 240 da Lei n. 8.112/1990.7

O problema ganhou nova face com a edição da Emenda Constitucional n. 45, de 8.12.04, que introduziu alterações significativas na competência da Justiça do Trabalho, motivando a impetração da MC-ADI n. 3.395-6 pela AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil), tendo como mira o inciso I do art. 114 da CF, na redação dada pela EC n. 45/04.

Apesar das substanciais modificações trazidas pela Emenda Constitucional n. 45, com a decisão da medida cautelar na MC-ADI n. 3.395, a competência da Justiça do Trabalho continuou a ser definida, segundo a Corte Maior, pela “causa de pedir” e “pedido” constantes da ação. Permanecendo, assim, como antes, para, exclusivamente, processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, desde que a matéria posta à composição jurídica tenha como causa de pedir uma relação de emprego, independentemente do pedido depender de questões de direito civil ou de natureza civil.8

Posteriormente, passado certo período de adaptação ao novo texto constitucional, a esse entendimento quanto à definição das competências jurisdicionais acoplou-se o princípio da “unidade de convicção”, destacado pelo Ministro Cezar Peluso, no CC n. 7.204-1. Por este princípio, se um mesmo fato tiver de ser analisado mais de uma vez, deve sê-lo pelo mesmo juízo9, uma vez que a cisão de competência não favorece a aplicação de justiça e a divergência de decisões para ações decorrentes da mesma relação de fato invocada entre órgãos jurisdicionais distintos causa um impacto deletério no jurisdicionado.

Não obstante, com o passar do tempo, quiçá em decorrência das transformações ocorridas na composição do Supremo Tribunal Federal, a metodologia interpretativa até então utilizada nos julgamentos desta Corte, no que diz respeito à definição da competência da Justiça do

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Trabalho, adquiriu novos contornos a partir das Reclamações propostas pelos entes públicos ao fundamento de afronta à decisão da MC-ADI
n. 3.39510.

Com efeito, com as sucessivas reclamações pela MC-ADI n. 3.395 começaram a surgir, no âmbito da Suprema Corte, decisões que se afastam da “causa de pedir” e “pedido” como pressupostos para fixação da competência, como até então vinha decidindo a Corte, para concentrar-se na “questão de fundo” das lides postas sob exame do judiciário.

Por questão de fundo, entende-se as situações relativas a casos específicos em que a administração, justificando-se na lei, embasa suas contratações de pessoal, independentemente da subsunção desta à realidade fática.

Assim, se existe lei estadual prevendo dado tipo de contratação sob o regime especial, contratando a administração pública sob sua égide, mesmo sem atenção aos seus requisitos, a simples existência da lei de cunho administrativo é a “questão de fundo” principal, de modo que não competiria à Justiça do Trabalho apreciar a relação, dada a natureza de caráter jurídico-administrativa da legislação que fundamentou a contratação. Ou seja, se a natureza da lei é jurídico-administrativa, também esta é a natureza da relação com base nela estabelecida, independentemente se a relação fática havida subsume-se ou não as suas hipóteses, a exemplo de contratação de trabalhadores temporários ou ocupantes de cargos em comissão que se alegam desvirtuados.11

Neste contexto, permaneceriam sob a competência da Justiça do Trabalho...

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