Não é apenas um nome: a luta por reconhecimento no universo trans

AutorDiaulas Costa Ribeiro/Flavia do Bonsucesso Teixeira
Páginas499-524

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Ver Nota123

Introdução

A demanda por um laudo/relatório que ateste a condição de transexualidade para compor os processos jurídicos de solicitação de alteração do nome civil é constante no Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais.4Este artigo pretende problematizar a compreensão dada a tal solicitação. Argumentamos que não seria o diagnóstico da transexualidade o agente responsável ou suiciente para justiicar por si a alteração solicitada. Interessa-nos aqui demons-trar como os (re)arranjos, as negociações e os conlitos envolvem as pessoas trans, particularmente suas relações com a família e o Estado. Ao romperem com as

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normas de gênero e frustrarem os projetos familiares, construídos ancorados na atribuição do sexo dada no nascimento, essas pessoas são posicionadas “no não lugar” que muitas vezes é materializado na expulsão de suas casas, sendo cotidianamente reiterado por outras instituições. Argumentamos que a alteração do nome e do sexo confere inteligibilidade a essas pessoas, interfere na produção de uma vida plena na qual o Estado diz sim, vocês existem, e podem se (re)posicionar a partir da família, ainda que seja pela (re)incorporação do sobrenome.

1 Vidas precárias

Desde o início deste século, tem sido crescente o número de trabalhos acadêmicos sobre as pessoas trans, particularmente as travestis. Marília Amaral e colaboradores5apresentaram uma revisão da produção acadêmica brasileira sobre travestis no período entre 2001 e 2010 e identiicaram a expressiva centralidade de trabalhos em temas como Aids, transformação corporal e a prostituição. Compreendemos o cenário descrito, entendendo que parte signiicativa destes, a exemplo do pioneiro trabalho de Hélio Silva6, foi construída nas calçadas da prostituição7. Consideramos indiscutível a relevância de alguns trabalhos que, problematizando a produção da abjeção e a exclusão das travestis, contribuíram (e ainda o fazem) para o empoderamento das travestis e a construção de políticas públicas.8No referido levantamento, as autoras identiicaram um reduzido

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número de escritos sobre envelhecimento, adolescência, educação e violências sofridas pelas travestis9.

Mesmo que em pequeno número, os trabalhos sobre os assassinatos e as mortes por adoecimento, principalmente decorrentes das complicações por Aids, ocupam centralidade no discurso sobre a violência vivenciada pelas pessoas trans10. A recorrente exclusão de casa que antecede a (re)coniguração em novas famílias aparece pouco problematizada na literatura.11Ainda que referida por alguns autores, a saída de casa – muitas vezes de forma violenta – aparece como constituinte da sociabilidade trans. Utilizaremos aqui fragmentos de duas entre-vistas que colaboram para pensar no processo de afastamento da família.

1. 1 Luana

Luana residia na região central de uma pequena cidade no Triângulo Mineiro, numa colônia composta por muitas casas pequenas e em mau estado de conservação. Ficamos por instantes parados em frente ao portão sem sabermos ao certo por quem chamaríamos. Não perguntamos o nome da mãe de Luana e

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também não tínhamos certeza se seu nome seria habitualmente usado nas relações de vizinhança. Encontramos uma adolescente que saía da colônia, descrevemos Luana como sendo uma travesti e ela logo identiicou: devíamos procurar por Luís. Curiosa, acompanhou-nos até o portão em que deveria chamar.

Era segunda-feira, dia de folga da D. Teresa12, que nos recebeu com olhares de desconiança, uma pergunta pairava no ar: o que Luís haveria aprontado desta vez? Apresentamo-nos, esclarecemos sobre a visita e deixamos a possibili-dade de retornar em outro momento quando lhe parecesse oportuno. Com um imenso sorriso, D. Teresa abriu o portão, considerou “engraçado” que seu ilho despertasse o meu interesse. “Que importância que ele tem?”. As dúvidas de
D. Teresa iriam conigurar um conjunto de argumentos que acabariam por demonstrar a sua incerteza sobre o lugar social de “seu ilho”. Talvez Luís tivesse se “transformado”, a seus olhos, num ser abjeto. Ao dizer sobre a produção do abjeto, destinado às zonas inabitáveis da vida social, onde se reúnem aqueles que não gozam do status de sujeito, Judith Butler auxilia a pensar na posição das travestis, na medida em que, ao materializarem “um corpo ambíguo”, desestabilizam as normas que conferem legitimidade aos corpos e perdem a qualidade de humano13.

Uma expressão de surpresa de D. Teresa diante da desenvoltura com que chamávamos Luís de Luana denunciou que ela ignorava o nome escolhido por Luís.

Muitas pessoas o chamam de Luisinha, mas ele sempre fala esse nome Luana. Outro dia achei aqui um papel, aqui... Um cartão com esse nome, mas eu não sabia que ele era chamado assim.

A pergunta seguinte viria reforçar o desconhecimento dessa mãe em relação ao cotidiano de Luana. Interrogada sobre o momento em que ela começou a se vestir com roupas atribuídas ao sexo feminino, D. Teresa nega que tenha mais de um ano. A primeira vez que vimos Luana foi em 2002, quando aos 13 anos, ainda meio menino, de lencinho preto no cabelo e uma minissaia desajeitada na

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cintura, tentava fazer ponto14numa rodovia, local tradicional de travestis. Naquela ocasião fugia assustada, negava-se a conversar, tinha medo de que fossemos do “Conselho Tutelar”. Também fugia das outras travestis que a expulsavam do lugar porque sua presença representava risco, pois estavam cientes de que ela era “de menor”.
D. Teresa parece desconhecer também que Luana, que acabara de completar 18 anos, é uma proissional do sexo, nega que ela trabalhe e airma que “no ponto de pobre, dá tudo que ela precisa”. Nesse momento da entrevista demonstra desagrado com o fato de ter que “sustentar” Luana. Para Zygmunt Bauman, a dependência deste outro que não te reconhece como necessário é um dos lados desta relação e um modo pelo qual a redundância é reiterada. “Com muita frequência, na verdade, rotineiramente, as pessoas declaradas “redundantes” são consideradas sobretudo um problema inanceiro. Precisam ser “providas” – ou seja, alimentadas, calçadas e abrigadas. Não sobrevivem por si mesmas...”15A mãe de Luana referia-se a ela no masculino e por meio dos seus gestos (levava as mãos nos cabelos ajeitando-os atrás das orelhas, erguia as sobrancelhas e, por vezes, o semblante demonstrava contrariedade) explicitava sua preferência de que izéssemos o mesmo: Luís. Era dele que ela estava falando, buscou no quarto o registro de nascimento e nos apresentou. Seria a prova cabal de que seu ilho nascera homem.

Recorremos a Michel Foucault para lembrar o lugar que o sexo ocupa, na perspectiva acima, como demarcador de uma verdade, “o núcleo onde se aloja, juntamente com o devir de nossa espécie, nossa ‘verdade’ de sujeito humano”.16

No decorrer da entrevista, D. Teresa evidencia sua crença nessa verdade, ou no dizer de Judith Butler, na noção do sexo como uma substância, ou seja, autoevidente.17

Fomos recebidos na cozinha, a sala da casa fora substituída por um quarto onde icava uma cama de casal, o outro quarto parecia ser dividido entre Luana e seu irmão. Essa divisão da casa parece ser oportuna, e encontra referência no

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trabalho de Carlos Rodrigues Brandão18quando este analisa como os espaços e os usos dos espaços das casas são constantemente (re)deinidos de acordo com o “ciclo de vida” de seus moradores. Luana/Luís divide o quarto com o irmão desde que foram morar juntos, há uns 05 anos. Seu irmão, que é mais velho e se recusou a falar sobre eles, disse apenas que não possuía relação alguma com ele. “O irmão dele não o aceita, talvez se ele se comportasse com mais respeito, mais respeitoso”.
D. Teresa hesitou diante da pergunta sobre o provável desrespeito que constituía o travestimento de Luana/Luís “... é feio porque não é assim que nasceu, nasceu homem”. D. Teresa repetiu por várias vezes a diiculdade de ter Luana/ Luís em casa alegando que “não há espaço suiciente”. A falta de espaço, concretizada no espaço físico, poderia ser compreendida como ausência de um lugar legítimo. Não há espaço para aquele que rompe com a norma.

Quando se trata de projetar as formas de convívio humano, o refugo são seres humanos. Alguns não se ajustam à forma projetada nem podem ser ajustados a ela, ou sua pureza é adulterada, e sua transparência, turva: os monstros e mutantes de Kafka, como o indeinível Odradek ou o cruzamento de gato com ovelha – singularidades, vilões, híbridos que desmascaram categorias supostamente inclusivas/exclusivas.19Para D. Teresa, ao frustrar as normas estabelecidas em que sexo e gênero devem se corresponder, Luana/Luís cria um hiato entre o humano e o inumano. Para ilustrar as perdas desta existência, ela destaca o abandono da madrinha de Luana/Luís: “(...) embora não sendo da família ela criava ele como se fosse um ilho. A madrinha dele abandonou ele porque ele virou isso”.

O isso estaria fora dos limites do humano, uma alusão ao pronome “it” muitas vezes utilizado para identiicar as travestis. O isso poderia vir a representar “todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante”.20

Alguns meses depois, Luana estava residindo em Uberlândia, numa pensão para travestis.

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1. 2 Renata

Esperamos ansiosos pelo primeiro contato com a mãe da Renatinha. Acompanhamos algumas histórias sobre a “brava” D. Aparecida. Conhecemos Rena-tinha em 2004, muito arredia, permanecia em silêncio e em atitude defensiva. Negava-se a conceder qualquer tipo de entrevista e, mesmo nos bares, sentava-se afastada. As histórias sobre sua relação com a mãe eram contadas pela Andrea ou Laura, mas nunca por ela mesma. Com dezessete anos e...

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