Africanidades na paisagem brasileira

AutorSilvio Marcus de Souza Correa
CargoDoutor em Sociologia pela Westfälische-Wilhelms-Universität Münster, pós-doutorado na Université du Québec à Rimouski (UQAR)
Páginas96-116

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Sílvio Marcus de Souza Correa 1

As paisagens do Brasil foram marcadas desde o período colonial por vários componentes alienígenas. Entre eles, destacamse as plantas de origem africana e asiática. O presente estudo trata de evidências da melancia (Citrullus lanatus) nos arredores de São Salvador da Bahia. Integrada à dieta alimentar dos brasileiros desde o século XVI, ela “africanizou” a paisagem baiana, embora sua posterior expansão pelo território nacional tenha ocorrido devido a vários fatores internos; inclusive, ao seu “abrasileiramento”. No entanto, o olhar dos viajantes europeus distinguia, ainda no século XIX, os elementos exóticos da paisagem brasileira, como as bananas, as mangas e as melancias, apesar de sua “naturalização” no ambiente e na percepção dos brasileiros em relação à paisagem.

história da paisagem. migração de plantas. Salvador da Bahia

Since the colonial period, the landscapes of Bahia have been marked by various foreign characteristics, among which plants of African and Asian origin stand out. The present study deals with the evidence of watermelon (Citrullus lanatus) in the outskirts of São Salvador da Bahia. As an integral component of the Brazilians’ diet since the XVI century, it “africanized” the Bahian landscape, although its subsequent expansion on the national territory occurred due to various internal factors, including its “Brazilianization”. Nevertheless, still in the XIX century, the view of the European travelers distinguished the exotic elements of the Brazilian landscape, such as bananas, mangos and watermelons, despite their “naturalization” on the area and on the perception of the Brazilians in relation to the landscape. : Landscape history. Plant migration. Salvador da Bahia

RESUMEN:

Los paisajes de Brasil fueron marcados desde el periodo colonial por varios componentes alienígenas. Entre ellos, se destacan las plantas de origen africano y asiático. El presente estudio trata de evidencias de la sandía (Citrullus lanatus) en

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los alrededores de San Salvador de Bahia. Integrada a la dieta alimentar de los brasileños desde el siglo XVI, ella “africanizó” el paisaje bahiano, aunque su posterior expansión por el territorio nacional haya ocurrido debido a varios factores internos; inclusive, a su “enbrasileñamiento”. Sin embargo, la mirada de los viajantes europeos distinguía, aún en el siglo XIX, los elementos exóticos del paisaje brasileño, como las bananas, las mangas y las sandías, a pesar de su “naturalización” en el ambiente y en la percepción de los brasileños en relación al paisaje.

Historia del paisaje. Migración de plantas. Salvador de Bahia.

INTRODUÇÃO

A predominância africana na paisagem do Brasil oitocentista é unânime nos relatos de viajantes europeus. Nas cidades, os trabalhadores africanos ou crioulos pululavam nos portos, nas ruas, dentro das casas. Também nos arrabaldes e nas fazendas não tinha como não reparálos, pois lá estavam eles no eito dos roçados, dos canaviais e dos cafezais. Mas a africanização das paisagens brasileiras não se deu apenas pelo predomínio da população de origem africana. Plantas africanas como as musáceas, cucurbitáceas e herbáceas foram onipresentes na paisagem agrária do Brasil.

Além do meio rural, muitas plantas alienígenas embelezavam as cidades do Brasil. Aliás, o urbano tinha muito de agrário. Cópia de animais pelas ruas, estradas de chão até no centro do burgo, onde havia uma ou outra rua ladrilhada, fontes jorrando água em várias praças e a abundância de roças e pomares nos seus arredores eram elementos naturais de grande expressividade nas paisagens urbanas do Brasil oitocentista.

Assim como no seu relato de viagem, as pinturas do holandês Quirijn Maurits Rudoplh Ver Huell (1787-1860) demonstram essa quase indistinção entre as paisagens agrárias e urbanas em Salvador da Bahia. No seu relato, o pitoresco contraste das casas brancas com o verde escuro das árvores, “que em toda parte emergiam por entre as edificações”, sugere uma paisagem de elementos culturais e naturais coalescentes (HUELL, 2007, p. 118). Assim também as torres brancas das igrejas se coadunam às copas verdejantes do arvoredo. Havia ainda o contraste entre elementos da natureza. Em Itaparica, o viajante observou que “em toda parte brilhavam as laranjas douradas em meio ao verde escuro da folhagem; elegantes palmeiras embalavam inúmeras coroas férteis de encontro a um límpido céu azul (Idem, p.211).” Escusado lembrar que Gregório de Matos Guerra já louvara em

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poema as belezas da ilha de Itaparica, onde “o melão de ouro, a fresca melancia, que vem no tempo, em que aos mortais abrasa o sol inquisidor de tanto oiteiro (MATOS, 1992).2

Nessas paisagens é indelével o elemento africano. Como observou de chofre o viajante holandês Ver Huell no seu primeiro dia em Salvador: “Homens negros quase inteiramente nus logo nos cercaram. O idioma que se falava por aqui e mais tantas outras coisas exóticas ao nosso redor causaram em mim um forte estranhamento” (HUELL, 2007, p. 119). O viajante alemão Robert AvéLallemant (1812-1884) fez o seguinte comentário quando da sua estada na capital baiana.

Se não se soubesse que ela fica no Brasil, poderseia tomála sem muita imaginação, por uma capital africana, residência de poderoso príncipe negro, na qual passa inteiramente despercebida uma população de forasteiros brancos puros. Tudo parece negro: negros na praia, negros na cidade, negros na parte baixa, negros nos bairros altos. Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é negro (AVÉLALLEMANT, 1980, p.22).

Também nas pinturas de JeanBaptiste Debret (1768-1848) sobre o cotidiano do Rio de Janeiro, a população negra está por toda parte. Além disso, o pintor francês destacou o orientalismo no Rio de Janeiro nas vestimentas, nos ornamentos, nas maneiras, na comida e também o africanismo em várias cenas urbanas ou nos arrabaldes da capital imperial.

Além da visibilidade da população africana e crioula na paisagem humana do Brasil, sua cultura era percebida pelos estrangeiros por meio de outros sentidos que a visão. Pela audição, alguns viajantes apreciaram o som das palavras e das canções dos vendedores ambulantes ou dos trabalhadores, em geral, escravos de ganho.

“Os ganhadores, por sua vez, eram escravos que, em troca de uma pequena remuneração, levavam com dificuldade sobre os ombros – ou a cabeça – toda espécie de produtos. A cada segundo, terceiro ou quarto passo, eles sempre emitiam um brado: este som era apenas uma parte da canção que era reproduzida em conjunto, quando eles levavam uma carga pesada ao lado dos seus companheiros. Nestes casos, cada um deles, na sua vez, entoava uma palavra daquele cântico (HUELL, 2007, p. 152).”

Mas essas “cidades negras” tinham muito mais africanismos que suas gentes3. Durante sua estada em Salvador, o holandês Ver Huell provou de bananas,

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melancias, comidas preparadas de origem africana, etc. A paisagem afrooriental da Bahia também foi várias vezes registrada em seu relato de viagem. Em Montserrat, ele concordou com o seu anfitrião “que a vida neste local devia ser realmente feliz: debaixo da sombra das laranjeiras e mangueiras floridas, escutando o fremir dos coqueiros misturandose ao tenro marulho das ondas [...]” (HUELL, 2007, p. 124-125).

Além da parte áudiovisual da paisagem, temse também uma olfativa. O mesmo viajante destacou os cheiros das comidas, preparadas ao ar livre e que exalavam pelas ruas estreitas da cidade. Além de méis africanos, alimentos de origem indígena eram preparados por mãos africanas como o amendoim assado na brasa ou o milho pipocado na areia quente (Idem, p.163).

A alimentação dos escravos e dos colonos concorreu para a permuta no campo alimentar entre a África e o Brasil, pois boa parte dos vegetais foi trazida e aclimatada para alimentar a população da sociedade colonial. Pelo gosto dos portugueses já acostumados com as delícias do Oriente, plantas de origem asiática também foram trazidas para o Brasil. Houve ainda a introdução de plantas européias, imperativo alimentar dos colonos e senhores brancos. Os primeiros cronistas como Pero Magalhães de Gandavo e Gabriel Soares de Sousa reportaram sobre as plantas de origem européia e aquelas já aclimatadas no continente africano ou na ilha de São Tomé.

A sociologia da alimentação no Brasil, tanto de Gilberto Freyre quanto de Câmara Cascudo, já demonstrou as diferentes permutas no campo alimentar, sendo que a mandioca recebeu atenção especial desde os relatos dos primeiros cronistas. Entre as frutas, a permuta foi marcada pelos ananases que os portugueses levaram para a África e Ásia e pelas bananeiras que de lá vieram. Além do seu nome africano, a banana aparece nos relatos quinhentistas como “figo da Índia”. Também o amendoim se africanizou, assim como a melancia se abrasileirou.

A melancia chegou ao Brasil no século XVI, sendo amplamente plantada e apreciada pelos indígenas como era pelos africanos (CAMARA CASCUDO, 2004, p. 643). Mas poucas informações se têm sobre as primeiras espécies de melancias e como se deu sua dispersão inicial na América portuguesa. Gilberto Freyre e Luís da

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Câmara Cascudo destacaram o protagonismo português na permuta alimentar entre a África e o Brasil.

Os portugueses já conheciam muitas plantas africanas desde a sua experiência “prébrasileira” naquele continente. Pelo seu baixo custo, pela sua fácil adaptação ou pela sua rentabilidade, muitas plantas africanas foram introduzidas no Brasil pelos portugueses. Não se pode olvidar que muitas herbáceas e frutíferas foram trazidas pelas suas funções terapêuticas e propriedades medicinais. A melancia era conhecida pelas suas propriedades diuréticas e vermífugas.

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