Mutação Constitucional

AutorDjalma Pizarro
Ocupação do AutorTabelião do 2º Ofício de Notas de Uberlândia
Páginas19-52

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A realidade dos acontecimentos demonstra que a Constituição não muda somente por meio dos mecanismos formais previstos na própria Carta Política, mas sofre, também, constante e silenciosa mutação, pressionada pelas forças sociais e pela conversão dos valores e costumes da sociedade, sem que tais alterações sejam acompanhadas das correspondentes variações do léxico da Constituição.

Karl Loewenstei1aponta que há mudanças imperceptíveis decorrentes do efeito do ambiente político ou dos costumes, que influenciam as normas.

Nesse sentido, García-Pelayo2aduz que "a Constituição sofre modificações ainda que permaneça inalterado seu texto e que, por conseguinte, não é o método de reforma previsto na Constituição para a transformação da mesma."

Em visão semelhante da doutrina brasileira, Gilmar Mendes observa:

Vistas sob essa perspectiva, portanto, as mutações constitucionais são decorrentes - nisto reside a sua especificidade - da conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social e cultural, que a Constituição - plura-

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lista por antonomásia - intenta regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte3.

Na doutrina nacional, Carmen Lúcia Rocha4leciona que o fenômeno por meio do qual são operadas modificações no sentido, significado e alcance das normas constitucionais, como consequência de um procedimento diferente daquele formalmente previsto para tal finalidade, ficou conhecido na doutrina como mutação constitucional.

1 Espécies de Mutação Constitucional

Analisamos a mutação constitucional sob a gênese da causalidade, na visão do chinês Dau-Lin5"a mutação constitucional é um estado de incongruência entre as normas constitucionais e a realidade constitucional", citado no Curso de Direito Constitucional6, delimitamos as seguintes causas:

  1. Prática estatal que não viola formalmente a Constituição;

  2. Pela impossibilidade de se exercerem certos direitos estatuídos constitucionalmente;

  3. Por uma prática estatal contraditória com a Constituição;

  4. Por meio da interpretação, situação que normaliza ou se ultrapassa no curso da própria práxis constitucional.

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2 Mutação Constitucional - Referências Doutrinárias e Históricas

Em trabalho de fôlego sobre o tema - Mutação Constitucional - Wellington Kublisckas7faz uma análise histórica e suas referências doutrinárias, afirmando que o termo foi utilizado pela primeira vez por Paul Laband8, que diferenciou a reforma constitucional de mutação constitucional.

Jellinek9entende que a mutação constitucional comporta modificação que deixa íntegro seu texto, decorrente de fatos desanexados de voluntariedade de tal mutação, ou seja, trata-se de um fenômeno involuntário.

Mais à frente, combateremos esse e outros conceitos de mutação constitucional que serão perfilados. Por ora, esclarecemos sempre a intenção de tais conceitos vincularem o fenômeno à alteração imperceptível da interpretação do texto, sem a própria alteração lexical, como se a mutação constitucional fosse apenas uma variação semântica do texto.

O chinês Hsü-Dau-Lin, já citado10, define o fenômeno da mutação constitucional como "a incongruência que existe entre as normas constitucionais por um lado e a realidade constitucional real."

Karl Loewenstein11, influenciado, nitidamente pelo aspecto sociológico, aduziu uma transformação capital do poder político, ou da estrutura social e/ou de algum interesse, sem que tal alteração fosse acompanhada por uma mudança no texto constitucional.

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O entendimento majoritário de mutação constitucional, na atualidade, admite que as normas constitucionais não podem ficar alheias às mudanças sociais e políticas de um povo no seu trajeto histórico. Assim, passou-se a compreender, pelo menos dentro de uma conceituação majoritária da doutrina constitucionalista, que a mutação constitucional é um fenômeno que indica as manifestações e alterações semânticas, que atingem o sentido e a completude das normas constitucionais, mas, decerto, dentro de parâmetros estabelecidos na própria Constituição.

Essa conceituação majoritária da doutrina constitucionalista, sempre fazendo referência a um limite da mutação constitucional, é o que debateremos neste trabalho, pois a proposta aqui apresentada tentará desmontar essa relação mutação = alteração semântica, e também para criticar o limite imposto para tal conceito: limite = Constituição.

Kublisckas12define que "as mutações constitucionais seriam as alterações ocorridas no âmbito normativo e comportadas pelo programa normativo, as quais devem ser aferidas no processo de densificação, concretização e aplicação das normas constitucionais", carreando essa análise uma evidente influência da teoria estruturante do Direito, tal como preconizada por Müller, que sustenta:

A mutação constitucional será, assim, imposta por uma modificação produzida no âmbito normativo da norma constitucional, mas será o programa normativo, contido basicamente no texto da norma, que determinará quais traços da realidade estão compreendidos no âmbito normativo e serão aptos a gerar uma mutação constitucional13.

De antemão, informamos que não concordamos com os parâmetros impostos pelo notável constitucionalista alemão acerca dos limites referidos no fenômeno da mutação constitucional. Por ora, apresentamos um argumento para reflexão, centrado nas seguintes indagações: A) A teoria estruturante do direito está apta para fornecer

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a resposta adequada (se é que existe uma) aos fatores exógenos do Direito? B) O programa normativo consegue assumir sua condição hierárquica superior sobre os fatos sociais e suas mudanças?

Dessas e outras questões essa tese se preocupará depois. No momento, infiltramos nos demais trabalhos já manejados a respeito do tema da mutação constitucional.

Konrad Hesse, na trilha de Müller, também aponta:

A concretização de conteúdo de uma norma constitucional, assim como sua realização, somente resulta possível incorporando as circunstâncias da ‘realidade’ que essa norma é chamada a regular. As particularidades, muitas vezes, já moldadas juridicamente dessas condições formam ‘o âmbito da norma’ que, da totalidade das realidades, afetadas por uma prescrição do mundo social, é destacado pela ordem, sobretudo expressada no texto da norma, o ‘programa da norma’, como parte integrante do tipo normativo. Como essas particularidades, e com elas o ‘âmbito da norma’, estão sujeitas às alterações históricas, podem os resultados da concretização da norma modificar-se, embora o texto da norma (e, com isso, o essencial, o ‘programa da norma’) fique idêntico. Disso resulta uma ‘mutação constitucional’ permanente, mais ou menos considerável, que não se deixa compreender facilmente e, por causa disso, raramente fique clara14.

A análise arguta de Konrad Hesse indica que o entendimento do fenômeno "mutação constitucional" não é de fácil apreensão: "que não se deixa compreender facilmente e raramente fique clara15."

Assim, deve ser afastada desde já a noção de que a mutação constitucional é somente uma "alteração de sentido, significado e alcance do texto constitucional, sem violar-lhe a letra e o espírito", na conceituação de Anna Cândida Ferraz16.

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A mesma doutrinadora, em monografia pioneira sobre o tema, aduz:

A mutação constitucional consiste na alteração não da letra ou do texto expresso, mas do significado, do sentido e do alcance das disposições constitucionais por meio, ora da interpretação judicial, ora dos costumes, ora das leis, alterações essas que, em geral, se processam lentamente, e só se tornam claramente perceptíveis quando se compara o entendimento atribuído às cláusulas constitucionais em momentos diferentes, cronologicamente afastados uns dos outros, ou em épocas distintas e diante de circunstâncias diversas.17A autora ainda desenvolve os parâmetros da mutação constitucional, interagindo seu conceito com alterações semânticas e limites preestabelecidos no texto maior:

A mutação constitucional altera o sentido, o significado e o alcance do texto constitucional sem violar-lhe a letra e o espírito. (...) Trata-se, pois, de uma mudança constitucional que não contraria a Constituição, ou seja, que, indireta ou implicitamente, é acolhida pela Lei Maior. (...) Em resumo, a mutação constitucional, para que mereça o qualificativo, deve satisfazer, portanto, os requisitos apontados. Em primeiro lugar, importa sempre em alteração do sentido, do significado e do alcance da norma constitucional. Em segundo lugar, essa mutação não ofende a letra nem o espírito da Constituição: é, pois, constitucional. Finalmente, a alteração da Constituição se processa por modo ou meios diferentes das formas organizadas de Poder Constituinte instituído ou derivado.18No decorrer da presente dissertação, discutiremos essas balizas, como as que definidas acima. Todavia, indene de dúvidas, todo trabalho de pesquisa, seja na área das ciências do espírito ou das ciências duras, já projeta um resultado, e, nos estreitos abordes desta pesquisa, será dizer que a mutação constitucional não se contenta em apenas cuidar de alteração semântica de texto, nem de colocar um limite teórico ao alcance da mutação constitucional. Afinal, a mutação constitucional pode mudar o texto legal (sem que seja alterada a letra do texto) e não se restringe aos limites da própria Constituição, visto que a força das

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transformações sociopolíticas em um determinado momento histórico consegue se sobrepujar às balizas impostas pela própria Lei Maior de um Estado.

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