Mulheres negras, sofrimento e cuidado colonial/Black women, suffering, and colonial care.

AutorPassos, Rachel Gouveia

Introdução

Já faz algum tempo que temos visto reportagens e publicações acadêmicas (1) que tratam sobre a retirada compulsória de bebês das mães que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas e que se encontram em situação de vulnerabilidade. Tal processo vem se dando pela via da imposição da justiça, no caso de Belo Horizonte, por meio das Recomendações n. 5 e n. 6 de 2014, do Ministério Público, e da Portaria n. 3 de 2016, emitida pela Vara da Infância e Juventude.

Outra forma de retirada das crianças e adolescentes de famílias pobres, chefiadas principalmente por mulheres negras, ocorre pelos equipamentos da política de assistência social, que de certa forma acabam assumindo uma determinada noção de negligência (2) como instrumento para avaliar a realidade. A utilização do termo sem maior problematização precisa ser feita, a fim de compreendermos a totalidade dos sujeitos (BERBERIAN, 2015). Além disso, é possível sinalizar que pode estar ocorrendo um processo de manicomialização através da assistência social (DUARTE, 2013).

A complexidade da temática nos convoca a refletir sobre as concepções de cuidado que perpassam as políticas públicas, em especial a saúde, a saúde mental e a assistência social, bem como a maneira como essa categoria analítica vem sendo tratada pelo Serviço Social brasileiro, conforme já sinalizado em outras produções (PASSOS, 2017; 2018). Problematizarmos o cuidado exige o questionamento sobre as relações sociais e a sociabilidade burguesa que está assentada no racismo, no patriarcado e na desigualdade de classe. Na perspectiva da ética do cuidado, o cuidado deve ser repartido por todos e não pode estar restrito às mulheres ou às famílias, ou seja, "o propósito para o qual o cuidado deveria ser direcionado é tornar a sociedade a mais democrática possível" (TRONTO, 2007, p. 290).

À luz do pensamento de Frantz Fanon (2008) podemos apontar que os indivíduos negros, homens e mulheres, são colocados na "zona do não ser". Fanon (2008), em Pele negra, máscaras brancas, nos mostra que existe uma concepção universal de ser humano que é destinada apenas aos brancos. Vai ser o racismo o alicerce desse sistema hierárquico que reparte a humanidade entre inferiores e superiores através de algumas marcas e, no caso brasileiro, essa marca está estabelecida pela cor da pele. Portanto, reconhecemos que a sociabilidade brasileira tem o racismo como base estruturante e estrutural, expresso através das políticas públicas e sociais, das instituições e das relações sociais.

Nesse caminho, objetivamos suscitar o debate acerca do suposto "cuidado" social que vem sendo propagado através de ações estatais, tendo como justificativa a proteção de indivíduos vulneráveis. O Estado que alega proteger acaba promovendo violações que reafirmam a punição e o extermínio dos corpos e comportamentos negros. É nesse processo que pretendemos abordar o cuidado colonial que reatualiza a captura da existência negra através dos discursos e práticas colonialistas. Além disso, abordaremos acerca da lógica manicomial e o extermínio da existência negra, entendendoa como uma estratégia que se perpetua para além dos muros institucionais e que compõe a sociabilidade brasileira.

O que estamos chamando de cuidado colonial?

Partimos da compreensão de que o cuidado é uma necessidade ontológica do ser social. O ser social se constituiu a partir do processo de transformação da natureza e das relações sociais, que têm como resultado novas necessidades para a existência humana. A "satisfação" das necessidades do ser social aparece como produção da vida, tanto da própria, como da alheia, através da conexão materialista entre os indivíduos. Ou seja, para que tenhamos a reprodução, a continuidade e a existência da humanidade, é preciso que ocorra a cooperação entre os indivíduos.

Nesse processo, existem aqueles que não conseguem ou não podem suprir as suas necessidades ontológicas primárias, o que os coloca como "dependentes" de um outro. Definimos o cuidado como sendo essa interdependência dos seres humanos, já que ao mesmo tempo há a necessidade do indivíduo para existir e a ação para suprir. Afirmamos que as maneiras do provimento e da viabilização do cuidado são transformadas de acordo com o desenvolvimento das forças produtivas e da reprodução social. Logo, na divisão social e sexual do trabalho, no modo de produção capitalista, ficou a cargo das mulheres a atribuição e a responsabilidade de realizar e executar o trabalho do cuidado.

A distribuição das tarefas é determinada a partir do gênero e se aprofunda com a raça e a classe, promovendo a naturalização de supostas habilidades como parte componente de determinado sexo biológico definindo, inclusive, com relação a comportamentos. Para Biroli (2018), é nesse processo que se constitui a associação entre mulher e domesticidade, o que não pode ser homogeneizado devido às relações raciais e de classe que atravessam e diferenciam a experiência do ser mulher.

No caso das mulheres negras, a intersecção entre gênero, raça e classe vai levá-las a permanecer na execução do trabalho doméstico e de cuidados, não só como uma relação de extensão da esfera reprodutiva, mas estabelecida e demarcada pela colonialidade. Na divisão social, sexual e racial do trabalho, são as negras (pretas e pardas) que ocupam os trabalhos mais subalternos e com menor remuneração, permanecendo na base da pirâmide social, conforme dados já publicados pelo Ipea (2018).

Biroli (2018), compreende que o trabalho destinado às mulheres na esfera reprodutiva representa um problema político, já que a responsabilização implica desvantagens. São essas desvantagens que proporcionam uma posição desigual para as mulheres e que não levam em consideração as atribuições, tarefas e responsabilidades destinadas para elas. Portanto, conforme assinala a autora, as desvantagens e a responsabilização ultrapassam a vida doméstica, estando institucionalizadas nas ações políticas e estatais (BIROLI, 2008).

Cabe sinalizarmos que essas desvantagens e responsabilidades variam de intensidade e maneira a partir do momento que realizamos uma leitura interseccional. O mito do amor materno (BADINTER, 1985) não pode ser incorporado, apropriado ou assumido por todas as mulheres. Nem todas podem "desfrutar" da maternidade, mesmo que haja uma imposição (quase) que compulsória para que todas experimentem e vivenciem as supostas "delícias" dessa função social. Para Pires (2017, p. 557), há uma negação da individualidade do negro brasileiro, historicamente relacionado

aos estereótipos pejorativos produzidos pelos violentos processos de subalternização e vulnerabilidade que marcaram as raízes coloniais-escravistas e se reproduzem pela colonialidade não ameaçada pelos pactos narcísicos assumidos nas mais diversas esferas da vida pessoal e institucional. A naturalização desse modelo que hierarquiza os indivíduos a partir da categorização racial atravessa de forma perversa a vida das mulheres negras. Podemos observar que desde o regime escravista ocorre o sequestro das crianças de mulheres negras, os estupros, a...

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