Movimento decasségui, Estado-Nação e Direitos

AutorMirtes Tieko Shiraishi
Ocupação do AutorAdvogada, Mestranda em Direito do Trabalho e Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Páginas155-162

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Introdução

A segunda metade da década de 1980 viu surgir o fenômeno decasségui que, inserido num contexto da migração internacional de trabalhadores, acabou por modificar o fluxo migratório que existia, desde o início do século passado, no sentido do Japão para o Brasil, de modo a invertê-lo, passando o Brasil a fornecer mão de obra não qualificada ao arquipélago nipônico.

O termo decasségui será explicitado nos itens posteriores, juntamente com alguns dos fatores que possibilitaram a ocorrência do movimento migratório respectivo. Dentre eles, a modificação da legislação de imigração japonesa, que influiu grandemente na continuidade do movimento e privilegiou os estrangeiros descendentes de japoneses.

Neste contexto, o presente artigo pretende abordar a questão da nacionalidade à luz da formação do Estado-Nação e do cidadão a ele pertencente, que acreditou nas promessas das garantias do Estado de Bem-Estar Social. E, dentro deste quadro, tratar da condição dos decasséguis que, no país de seus ancestrais, confiando no elemento étnico, buscaram a integração com os nacionais japoneses e o reconhecimento de direitos de cidadania e nacionalidade, os quais não lhes foram concedidos, uma vez que o Japão adota o princípio do ius sanguini. Restou a tais imigrantes, como se abordará, a condição de meros sujeitos de direito, sem a correspondente garantia de uma vida digna.

A crítica à noção de "sujeito de direito", aqui formulada, é retirada de Michel Miaille (2005). Para esse autor, o "sujeito de direito" é um conceito que surgiu num determinado período histórico, para responder ao modo de produção capitalista e ao término de uma forma de organização social solidária e tradicional.

A extinção desse modo de organização deu lugar a uma sociedade atomizada, composta por indivíduos isolados e independentes, e por isto, autônomos para expressar sua vontade. E a esta representação ideológica da sociedade correspondeu, no plano jurídico, à instituição do sujeito de direito.

O presente artigo tratará, ao início, do contexto que fez nascer o fenômeno decássegui, representado pelo intenso fluxo migratório de brasileiros, descendentes de japoneses, para o território nipônico. As diversas acepções desse vocábulo são tratadas no capítulo segundo, assim como a questão da crise de identidade do brasileiro descendente de japoneses que, no Japão, terra de seus ancestrais, sente-se e é tratado como um verdadeiro estrangeiro. O capítulo terceiro introduz a noção de Estado-Nação, também ela surgida num determinado contexto histórico, ao qual se relacionam os conceitos de nacionalidade e cidadania. Tratados estes conceitos, busca-se, no Capítulo 4, contrapor os de cidadão e de sujeito de direito, desmistificando que este seja a garantia dos direitos pertinentes ao primeiro. Tecemos, ao final, considerações conclusivas.

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1. O contexto: a inversão do fluxo migratório entre brasil e japão

O Tratado de Amizade, Comércio e Navegação celebrado entre o Brasil e o Japão em 5 de novembro de 1895, deu início às relações diplomáticas entre os dois países (NINOMIYA, 1995-1996). A chegada, em 1908, do navio Kasato Maru no porto de Santos, trazendo os primeiros imigrantes japoneses, inaugurou o fluxo migratório e a ampliação do relacionamento, que se interrompeu, todavia, com a Segunda Guerra Mundial. Passado este evento, a imigração japonesa ao Brasil foi reiniciada em 1953, tendo o último navio de imigração aqui atracado no ano de 1973 (NINOMIYA; TANAKA, 2004).

A prosperidade do Japão e a crise econômica instalada no Brasil conduziram à inversão do fluxo de migração daquele primeiro em direção ao segundo. Mas as condições econômicas dos dois países não explicam, por si, o movimento migratório, que não pode ser isolado de um contexto maior, qual seja, o da globalização da economia mundial, e da correlata migração internacional de trabalhadores (NINOMIYA; TANAKA, 2004).

O final do século XX e início do século XXI regis-tram intensa movimentação de mão de obra trabalha-dora partindo dos países em desenvolvimento para os países do Primeiro Mundo, em escala nunca vista. Neste panorama é que se enquadra a "verdadeira diáspora que espalhou brasileiros por todo o mundo desenvolvido" (OLIVEIRA, 1992, p. 51, apud NINOMIYA, 1992). Segundo Oliveira:

A presença maciça de trabalhadores nipo-brasileiros no Japão insere-se, portanto, nesse quadro maior descrito. Não é um fenômeno isolado. Não existe o problema dos dekassegui, como às vezes leio na imprensa. Não é um problema. É um fenômeno social, que deve ser examinado através de uma abordagem multi-disciplinar, com enfoque econômico, jurídico, sociológico, de antropologia cultural, e político (OLIVEIRA, 1992, p. 51).

No contexto japonês, a expansão econômica do "Heisei Boom", período de crescimento da economia japonesa, iniciado em 1986, teve seu ápice com a denominada "economia da bolha" e fez crescer a demanda por mão de obra. Tal demanda não se resolveu com a automação. A "prosperidade reinante", como analisa Reis (2001, p. 52), gerou demandas também dos setores do comércio e serviços, em franca expansão.

Num primeiro momento, o Japão não se abriu aos estrangeiros para resolver a falta de mão de obra. Contudo, segundo Ninomiya e Tanaka:

Estavam criadas as condições que tornavam o Japão um país atraente em termos de imigração: a crescente demanda interna de produção requerida mão de obra e, devido à sua escassez e sendo os tipos de emprego oferecidos aqueles rejeitados pelos japoneses, os chamados empregos "3Ks" (K das palavras em japonês kitanai, kitsui e kiken, que significam, respectivamente, sujo, árduo e perigoso), uma das soluções encontradas foi a mão de obra estrangeira. (NINOMIYA; TANAKA, 2004, p. 19).

Neste contexto é que se desenrolará o fenômeno decasségui, com a inversão do movimento migratório do Brasil para o Japão, com os brasileiros, descendentes de japoneses, partindo em busca da prosperidade nipônica e da alta remuneração pelo trabalho ali oferecida.

Outro fator, embora tenha ocorrido depois do início do movimento decasségui, mas que contribuiu enormemente para sua continuidade, foi a revisão da Lei de Controle de Imigração Japonesa, entrada em vigor em 1990.

A Lei de Controle de Imigração e de Refugiados, então em vigor no Japão, não autorizava a permanência dos estrangeiros que realizavam trabalhos não qualificados, ou monofuncionais. De outra parte, só permitia a entrada de pessoas pertencentes a categorias por ela especificadas, altamente qualificadas: "diplomatas, funcionários governamentais, professores, artistas, religiosos, jornalistas, investidores, engenheiros, pesquisadores, estudantes, dentre outros" (NINOMIYA; TANAKA, 2004, p. 289).

Reis (2001) pondera que o fenômeno decasségui não teria sido possível sem a permissão das autoridades japonesas, e indaga:

Que razões teriam levado o Governo de Tóquio a reformular sua legislação de imigração, introduzindo, pela primeira vez em quase quarenta anos, dispositivo que permite o trabalho não qualificado de nikkei no Japão? Por que decidiu "importar" trabalhadores de tão longe quando sua vizinhança geográfica estaria mais do que desejosa de suprir essas carências de mão de obra? (REIS, 2001, p. 56)

A autora observa ainda que, nos anos oitenta, o Japão teria se tornado, além de um país de altos salários, de abundância de empregos não qualificados, co-

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mo já visto, também um grande receptor de imigrantes ilegais. Assim, filipinos, tailandeses, iranianos, malaios e paquistaneses, entre outros asiáticos encontravam-se em solo japonês.

Razões não "oficialmente divulgadas" poderiam ter orientado a decisão do governo japonês de alterar sua legislação imigratória, tais como notícias de conflitos sociais nos EUA e na Europa, entre...

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