Motorista e o Controle no uso de Drogas e Bebidas Alcoólicas. Confronto entre o Direito Fundamental à Privacidade e o Direito Fundamental à Segurança no Trânsito

AutorGérson Marques/Ney Maranhao
Páginas52-67

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1 - Considerações iniciais

Notícias inesperadas e dolorosas sobre a ocorrência de acidentes de trânsito e, em muitos casos, a consequente desestruturação familiar provocada pelas sequelas corporais ou mesmo pela ocorrência do óbito da vítima, batem a porta dos lares no Brasil e no mundo de forma cada vez frequente.

A análise de dados estatísticos, como os da Organização Mundial da Saúde, demonstra que 1,2 milhões morrem nas estradas mundiais por ano, o que proporciona o reconhecimento dos acidentes de trânsito como a primeira causa de mortes entre as pessoas com faixa etária de 15 a 29 anos e a terceira entre pessoas com idade entre 30 e 44 anos1.

Dados oficiais do Ministério da Saúde mostram que, entre 2002 e 2010, o número total de óbitos por acidentes com transporte terrestre no Brasil cresceram 24% (vinte e quatro por cento), passando de 32.753 para 40.610 mortes por ano2.

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Os acidentes de trânsito também proporcionaram no Brasil 145 mil internações no Sistema Único de Saúde, 15% (quinze por cento) a mais do que no ano de 2009, o que representa um investimento de R$ 190 milhões do Ministério da Saúde só com procedimentos hospitalares específicos para atendimento das vítimas de acidentes de trânsito3.

A análise mais acurada dos acidentes demonstra que a utilização de drogas lícitas e ilícitas pelo condutor do veículo, em especial do álcool, é um dos fatores preponderantes para ocorrência do evento danoso.

De acordo com a pesquisa realizada pelo Programa Acadêmico sobre Álcool e outras Drogas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nos acidentes de trânsito, em cerca de 75% (setenta e cinco por cento) dos casos encontrou-se a presença de álcool, sendo que, com vítimas fatais, os testes de alcoolemia realizado por legistas do Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro nos 94 (noventa e quatro) mortos em acidentes, apenas em 11 (onze), o que equivale a 11,77 (onze vírgula setenta e sete por cento), não haviam ingerido bebida alcoólica e, por conseguinte, nas 83 (oitenta e três) vítimas restantes (equivalente a 88,3% (oitenta e oito vírgula três por cento)), foi detectada a presença de álcool no sangue, sendo que, desses com teste positivo, 60,2% (sessenta vírgula dois por cento) dos casos envolvidos apresentavam níveis igual ou superior a 6 (seis) decigramas por litro de sangue, o que viola o Código de Trânsito Brasileiro4.

Toda essa problemática envolvendo acidentes de trânsito e o consumo de drogas, principalmente o álcool, tem proporcionado atualização da legislação pátria com o intuito de proporcionar mecanismos jurídicos mais adequados ao anseio social por segurança no trânsito.

Nesse sentido, observa-se que o Código de Trânsito Brasileiro (Lei n. 9.503/97) sofreu profundas alterações com a Lei n. 11.705/2008, que, dentre outros aspectos, alterou o art. 306, para fixar o ilícito penal de condução de veículo automotor, em via pública, em estado de concentração de álcool por litro igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob influência de qualquer outra substância psicoativa que determine a dependência.

Cabe destacar que, na esteira da evolução legislativa, o Poder Judiciário também tem fixado interpretações jurídicas que se coadunem em resguardar a segurança do cidadão no trânsito.

Nesse sentido, ressalta-se a decisão proferida pela 2ª Turma, do Egrégio Supremo Tribunal Federal, que, em voto da lavra do Ministro Ricardo Lewandowski, de forma unânime e inovadora, reconheceu que o condutor do veículo embriagado, ainda que concretamente não cause dano, comete crime de perigo abstrato, ao violar os termos do art. 306, Código de Trânsito Brasileiro, conforme se pode verificar na ementa:

HABEAS CORPUS. PENAL. DELITO DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. ALEGAÇÃO DE INCOSNTITUCIONALIDADE DO REFERIDO TIPO PENAL POR TRATAR-SE DE CRIME DE PERIGO ABSTRATO. IMPROCEDÊNCIA. ORDEM DENEGADA.

I — A objetividade jurídica do delito tipificado na mencionada norma transcende a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da proteção de todo o corpo social, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança nas vias públicas.

II — Mostra-se irrelevante, nesse contexto, indagar se o comportamento do agente atingiu, ou não, concretamente, o bem jurídico tutelado pela norma, porque a hipótese é de crime de perigo abstrato, para o qual não importa o resultado. Precedente.

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III — No tipo penal sob análise, basta que se comprove que o acusado conduzia veículo automotor, na via pública, apresentando concentração de álcool no sangue igual ou superior a 6 decigramas por litro para que esteja caracterizado o perigo ao bem jurídico tutelado e, portanto, configurado o crime.

IV — Por opção legislativa, não se faz necessária a prova do risco potencial de dano causado pela conduta do agente que dirige embriagado, inexistindo qualquer inconstitucionalidade em tal previsão legal.

V — Ordem denegada” (Habeas Corpus 109.269
— Minas Gerais — Sessão do dia 27.9.2011)

Prosseguindo no caminhar da atualização legislativa, observa-se que a Lei n. 12.619/2012 também alterou o Código de Trânsito Brasileiro, ao estabelecer novo regramento na sistemática da jornada dos motoristas profissionais nos arts. 67-A, 67-B e 67-C, bem como alterou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), fixando, dentre os deveres profissionais do motorista profissional, “submeter-se a teste e a programa de controle de uso de droga e de bebida alcoólica, instituído pelo empregador, com ampla ciência do empregado” (art. 235-B, inciso VI).

Nesse ponto, verifica-se que a recente fixação do exame toxiológico e/ou de alcoolemia para motoristas profissionais pela Lei n.
12.619/2012, que introduziu o art. 235-B, inciso VI, na CLT, tem enfrentando resistências na sua implementação, na medida em que, ao privilegiar o direito fundamental do cidadão à segurança no trânsito, viola o também direito fundamental à privacidade do trabalhador.

Propõem-se, portanto, analisar, no presente trabalho, exatamente essa área de tensão entre o direito fundamental do cidadão à segurança no trânsito e o direito fundamental à privacidade do trabalhador a partir da aplicabilidade ou não do art. 235-B, inciso VI, na CLT.

2 - Proteção jurídica da privacidade
2. 1 - Aspectos históricos

A preocupação com a preservação da intimidade, do psique, do segredo pessoal, da vida privada, como individualidades próprias do homem, de acordo com Paulo José da Costa Junior5, apenas passaram a desencadear calorosos debates nos Tribunais e estudos jurídicos no século XIX.

O Tribunal Civil do Sena, na França, foi o primeiro órgão judicial a reconhecer a proteção da privacidade como atributo inerente ao ser humano.

A lide envolveu uma atriz do cinema fran-cês, Elisabeth Rachel Felix, que, pouco antes de falecer vítima de tuberculose, foi retratada por artistas no estado de debilidade em que se encontrava.

Posteriormente, a pintura passou por várias exposições, como também foi submetida à várias reproduções, quando, então, a irmã de Elisabeth Rachel Felix ajuizou ação no Tribunal Civil do Sena, em 1858, que, acolhendo os fundamentos da autora, determinou a apreensão da obra e das cópias ao reconhecer que o homem, ainda que famoso, possui o direito de manter em anonimato a sua intimidade e a sua vida privada.

Nos Estados Unidos, em 1890, os advogados norte-americanos Samuel Dennis Warren e Louis Dembitz Brandeis escreveram o artigo The Right to Privacy, sendo publicado no Harvard Law Review6.

O artigo doutrinário de Samuel Dennis Warren e Louis Dembitz Brandeis, motivado pela busca de fundamentos jurídicos que resguardasse a vida privada da família de Warren, foi pioneiro na defesa do direito à privacidade, ou seja, no direito de estar só, no direito à liber-

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dade de exercer os privilégios civis (the right to be let alone, the right to liberty secures the exercise of extensive civil privileges)7.

Samuel Dennis Warren e Louis Dembitz Brandeis reconhecem que a proteção jurídica da privacidade torna-se inevitável, especialmente considerando que os avanços sociais têm intensificado a produção intelectual e permitido novas formas de manifestação de sentimentos e emoções, embora ressaltem que o direito a privacidade não é absoluto, comportando flexibilidade no caso de permissibilidade legal, interesse público ou anuência do próprio indivíduo envolvido8.

Após intensos debates doutrinários e análises jurisprudenciais da matéria, a tutela da privacidade passou a ser reconhecida internacionalmente na Declaração Universal de Direitos do Homem, em 10 de dezembro de 1948, por meio da Resolução 217 A, da Assembleia Geral das Nações Unidas, que consagrou no seu art. XII que “Ninguém será objeto de ingerências arbitrárias em sua vida privada, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem de ataques a sua honra ou a sua reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências e ataques”9.

Em 4 de abril de 1950, os governos signatários e membros do Conselho da Europa, reunidos em Roma, publicaram a Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais que consagrou o direito à privacidade, ao estabelecer no art. 8º a seguinte redação:

“Direito ao respeito pela vida familiar.

  1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.

  2. Não pode haver ingerência de autoridade pública no exercício desse direito senão quando esta ingerência estiver prevista em lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a...

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