Razoabilidade e moralidade: princípios concretizadores do perfil constitucional do estado social e democrático de direito

AutorProfª Weida Zancaner
CargoProfessora de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Assessora Jurídica do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.
Páginas1-14

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Antes de enfocarmos a razoabilidade e a probidade de forma sistemática, impende lembrar que desde os primórdios das civilizações o homem tem lutado contra o arbítrio.

Herôdotos o pai da História, no ano de 445 ac, põe nas palavras de Otanes, um persa célebre, o seguinte discurso:

"Em minha opinião o governo não deve caber a um único homem; isso nem é agradável nem é bom. (...). Como seria possível haver equilíbrio no governo de um homem só, se nele o governante pode fazer o que lhe apraz e não tem de prestar contas de seus atos? (...). O governo do povo, ao contrário, traz primeiro consigo o mais belo de todos os nomes: "igualdade perante a lei".1

As idéias de igualdade perante a lei e a necessidade de controle dos atos exercidos pelos detentores do poder foram se aperfeiçoando através dos séculos até eclodirem condensadas nas idéias de Rousseau e Montesquieu, que deram embasamento teórico à Revolução Francesa.

Jean-Jaques Rousseau proclamava a superioridade da lei. A lei por ser geral e abstrata impede favoritismos e perseguições, além de ser a expressão da vontade geral. Page 2

Já o barão de Montesquieu pregava: todo aquele que detém o poder tende a abusar dele. É necessário então que o Poder detenha o Poder. Isto é, cumpre que aquele que faz as leis não as execute nem julgue; que aquele que executa as leis nem as faça ou julgue e que aquele que julga nem as faça ou execute. Havia, como há, nesta concepção, uma ideologia protetora dos indivíduos contra o uso indevido do Poder.

Destas idéias, é que surgiu a concepção do Estado de Direito que evolui para o Estado Social e Democrático de Direito.

Sem embargo do exposto, no limiar do século XXI, os Estados substancialmente democráticos constituem pérolas raras em pântano de obscurantismo e miséria. Estados autoritários, travestidos de democráticos, ao reproduzirem "consagradas fórmulas vigentes nos países culturalmente mais evoluídos, adotam em seus regimes constitucionais instituições teoricamente aptas a engendrar resultados democráticos"2. Entretanto, essas instituições e os objetivos aos quais elas se preordenam permanecem cristalizados nas constituições desses Estados, sem jamais se concretizarem.

Inúmeros fatores impedem a efetivação dos ideais democráticos albergados na maioria das cartas constitucionais dos Estados denominados formalmente democráticos e dos Estados em transição para a democracia 3 Dentre eles, a razoabilidade e a moralidade exercem papel de relevo, como procuraremos demostrar.

O Brasil é um Estado Social e Democrático de Direito, muito embora esteja consignado no artigo 1º da Lei Maior tão só que a "República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel, dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituí-se em Estado democrático de direito".

O Brasil, por determinação constitucional, deve se constituir em Estado Social e Democrático de Direito, em razão do que dispõem entre outras, as normas contidas nos artigos 1º, III, 3º, I e III e IV, 5º LV, LXIX , LXXIII, LXXIV, LXXVI, 6º,7º, I, II,III, IV, VI, X, XI, XII; 23, 170, II, III, VII e VIII.

O Estado Social é aquele que além dos direitos individuais assegura os direitos sociais, sendo obrigado a ações positivas para realizar o desenvolvimento e a justiça social, como bem observa Carlos Ari Sundfeld4

Ora bem, a razoabilidade e a moralidade são, segundo entendemos, essenciais à concreção e persistência do Estado de Direito ou do Estado Social e Democrático de Direito, entendido este como aprimoramento daquele e não como categoria distinta. Page 3

Com efeito, o Estado Social e Democrático de Direito não pode ser concebido à margem dos princípios da razoabilidade e da moralidade, pois ambos são seus elementos caracterizadores. Assumem primordial importância quando da análise de um Estado em concreto e da efetivação do disposto em seu perfil constitucional, já que, sem o atendimento destes princípios não se realiza efetivamente a concepção teórica informadora deste tipo de Estado.

A doutrina ao se pronunciar sobre o princípio da razoabilidade ora enfoca a necessidade de sua observância pelo Poder Legislativo, como critério para reconhecimento de eventual inconstitucionalidade da lei, ora o apresenta como condição de legitimidade dos atos administrativos, ora aponta sua importância para o Judiciário quando da aplicação da norma ao caso concreto. Isto demostra de forma cristalina que a razoabilidade é essencial ao sistema jurídico como um todo e que sua utilização é essencial à concretização do direito posto.

A índole do Direito positivo, como nos ensina Recasens Siches5, não é permanecer no reino das idéias puras, válidas em si e por si com abstração de toda aplicação real a situações concretas da vida.

A índole do Direito positivo é sua efetivação. Aliás, outra não é a lição de Miguel Reale quando grafa:

"Poder-se-á dizer que o Direito nasce do fato e ao fato se destina, obedecendo sempre a certas medidas de valor consubstanciadas na norma6.

A importância da "razoabilidade", como limite ao exercício legítimo da atividade legislativa foi encarecida por CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO7:

"A moderna teoria constitucional tende a exigir que as diferenciações normativas sejam razoáveis e racionais. Isto quer dizer que a norma classificatória não deve ser arbitrária, implausível ou caprichosa, devendo, ao revés, operar como meio idôneo, hábil e necessário ao atingimento de finalidades constitucionalmente válidas. Para tanto, há de existir uma indispensável relação de congruência entre a classificação em si e o fim a que ela se destina. Se tal relação de identidade entre meio e fim - "means-end relationship", segundo a nomenclatura norte- americana - da norma classificatória não se fizer presente, de modo que a distinção jurídica resulte leviana e injustificada, padecerá ela do vício da arbitrariedade, consistente na falta de "razoabilidade" e de "racionalidade", vez que nem mesmo ao legislador legítimo, como Page 4 mandatário da soberania popular, é dado discriminar injustificadamente entre pessoas, bens e interesses na sociedade política.

Esclareça-se que para o autor as expressões "distinguir", "classificar", "classificação", aplicadas à atividade legislativa, são equivalentes a "dispor", "estatuir", conforme se pode depreender quando diz:

"Pode-se mesmo afirmar que legislar significa classificar. Classificam-se pessoas e bens segundo os mais diversos critérios fáticos para fins de se atribuir a cada conjunto da realidade efeitos jurídicos singulares e de toda espécie"8 .

Claro está que os direitos individuais e coletivos albergados na Constituição e cerne do Estado Social e Democrático de Direito não podem ser postergados pelo legislador infraconstitucional, nem pode este desnaturá-los editando leis que com eles conflitem quer frontalmente quer por via oblíqua, sob pena de afronta ao princípio da razoabilidade e, consequentemente ao princípio da legalidade.

A importância do princípio da razoabilidade no âmbito da atuação do Poder Executivo ombreia-se à importância desse princípio quando do exercício das outras duas funções do Estado

Para Celso Antônio, enuncia-se com o princípio da razoabilidade

que a Administração, ao atuar no exercício da discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida. Vale dizer: pretende se colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas --- e portanto jurisdicionalmente invalidáveis -- as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas em desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição manejada"9 (Curso de Direito Administrativo, p. 54, 4 ed. rev. e ampl., Malheiros Ed., SP., 1993).

Em suma: um ato não é razoável quando não existiram os fatos em que se embasou; quando os fatos, embora existentes, não guardam relação lógica com a medida tomada; quando mesmo existente alguma relação lógica, não há adequada proporção entre uns e outros; quando se assentou em argumentos ou em premissas, explicitas ou implícitas que não autorizam do ponto de vista lógico, a conclusão deles extraída. Page 5

Recaséns Siches, com propriedade, aponta a necessidade da observância do princípio da razoabilidade pelo Poder Judiciário.

Os ensinamentos do mestre estão sintetizados de forma lapidar no seguinte trecho de sua monumental obra intitulada "Nueva Filosofia de la Interpretacion del Derecho":

"O juiz, para averiguar qual a norma aplicável ao caso particular submetido à sua jurisdição, não deve deixar-se levar por meros nomes, por etiquetas ou conceitos classificatórios, mas, pelo contrário, tem que ver quais são as normas, pertencentes ao ordenamento jurídico positivo a ser aplicado no caso concreto, que ao dirimir o conflito estejam em consonância com os valores albergados e priorizados por este mesmo ordenamento" 10 .

Em face do exposto, pode-se concluir, que o...

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