A cidade e o direito à moradia: o instituto do usucapião como alternativa de regularização jurídica de habitações precárias em favelas

AutorJosé Guilherme Perroni Schiavone; Elizabete David Novaes
CargoBacharel em Direito pelas Faculdades COC de Ribeirão Preto; Doutora em Sociologia pela Unesp de Araraquara
Páginas1-18

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1. Introdução

O déficit habitacional na contemporaneidade tem se mostrado um dos principais desafios a ser superado pela sociedade brasileira. 12A condição de miserabilidade dos habitantes que residem nas chamadas favelas é precária e necessita urgentemente da aplicabilidade do Direito para garantir-lhes uma condição digna de vida.

Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo apontar para a problemática da moradia urbana, especificamente no que se refere à questão das garantias jurídicas voltadas ao direito de moradia.

Dentro desta preocupação, apresenta-se neste estudo, uma análise crítico-reflexiva acerca da necessidade de verificar as garantias dos menos favorecidos obterem a proteção legal de "sua propriedade", como premissa à redução das desigualdades sociais.

Importante salientar que a base metodológica deste trabalho é a dialética, entendida como método de análise e reflexão que favorece a compreensão do movimento das contradições e sua superação por meio das ações concretas dos sujeitos socialmente determinados. Neste trabalho, de cunho teórico, a problemática da moradia é tratada a partir de sua compreensão em meio a uma totalidade social e jurídica.

Deste modo, para compreender a problemática apresentada em seu movimento dialético, lança-se mão do processo teórico-dedutivo, partindo de argumentos gerais acerca da formação das favelas no Brasil para se chegar à realidade caótica que as referidas áreas urbanas apresentam, para assim propor os mecanismos possíveis dentro do nosso ordenamento jurídico, com vistas a garantir juridicamente o direito de moradia com dignidade. Page 2

1. 1 - Conceituando a Cidade

Com o crescimento das cidades, a literatura a respeito delas também cresceu consideravelmente. Desse modo, a compreensão teórica da categoria "cidade" pode ser agrupada em três grupos, como o faz Ruben George Oliven (1988), sendo a cidade classificada pelo autor como: a) variável independente: corrente teórica está intimamente associada à corrente da ecologia humana representada por alguns membros da Escola de Chicago (escola esta que inaugurou a Sociologia Urbana); b) variável contextual: corrente que considera que as cidades devem ser compreendidas historicamente como partes de sociedades mais amplas, abrangentes, levando-se com isso, a discutir e ressaltar a importância que viver em determinadas cidades pode ter para os fenômenos sociais; e c) variável dependente: variável que leva em consideração os fatores históricos, como resultado de várias causas econômicas, políticas e sociais, que, por sua vez, definiriam seus diversos tipos, e nesse sentido, a cidade não se auto-explica, pois não é vista como uma totalidade, mas apenas como uma objetivação maior na qual ela se insere.

1. 2 - Lei de Terras e Urbanização

A Lei de Terras, quando determinou a proibição das aquisições de terras devolutas por outro título que não o da compra, impediu que a apropriação fundiária se desse pelo uso e ocupação da terra. Nesse momento, instalou-se o conflito fundiário em nosso país, pois, anteriormente à referida lei, a propriedade era legítima pela sua posse, ou seja, pela sua ocupação efetiva.

Com isso, a Lei de Terras instituiu o conflito ao estabelecer que a propriedade da terra seria válida mediante compra, e não mais pela efetiva ocupação, transformando a terra em uma questão mercadológica (LEITÃO; LACERDA, 2003).

Para Lúcia Leitão e Norma Lacerda:

A partir da instituição dessa lei, as cidades brasileiras passaram a conviver com um problema que o tempo e as circunstâncias só fizeram agravar: a ocupação - agora ilegal - de parcelas crescentes dos seus territórios por populações cuja baixa renda não lhes permitia ter acesso ao mercado imobiliário. (LEITÃO; LACERDA, 2003, p.60)

A solução encontrada pela população de baixa renda foi a ocupação pura e simples de um faixa de terra urbana. A urbanização, nesse contexto, foi marcada pela ação de grupos sociais que afrontaram proprietários fundiários e o Estado, evidenciando, com isso, que o problema da moradia requeria alterações estruturais, inclusive os de natureza legislativa. Ou seja, surgia a necessidade de adequar as leis aos fatos cotidianos.

A conseqüência mais visível do problema da moradia é o acirramento dos conflitos envolvendo a propriedade da terra, decorrentes dessas ocupações ilegais, sejam em terras públicas ou privadas. Page 3

Desse modo, os movimentos sociais contribuíram satisfatoriamente para que, no final da década de 1980, a sociedade percebesse a necessidade do direito de propriedade se subordinar ao direito de moradia, passando-se a clarificar o exercício da função social da propriedade. Destaca-se, como decorrência, dentre os vários movimentos sociais, dois grandes movimentos: o Movimento dos Sem-Terra (nas áreas rurais) e o Movimento dos Sem-Teto (nas áreas urbanas).

Desde os primórdios da industrialização até a década de 1930, o problema habitacional era resolvido pelas empresas, em que se buscava alojar a mão-de-obra por meio da construção de "vilas operárias", próximas às fábricas, onde as residências eram vendidas ou alugadas aos seus trabalhadores.

A solução criada pelas empresas mostrou-se viável na medida em que a força de trabalho era diminuta, pois as casas se destinavam aos operários mais qualificados. Soma-se a pouca quantidade de trabalhadores, o fator do baixo custo do terreno e da construção, tornando possível a fixação do trabalhador.

Com o aumento do crescimento industrial, o número de trabalhadores foi rapidamente intensificado, no que se tornou desnecessária a fixação dos trabalhadores, pois a mão-de-obra, anteriormente "escassa", passou a abundar (CAMARGO et alii, 1982).

As empresas, frente a esta nova realidade da época, e buscando contar com uma força de trabalho barata e abundante, que permitisse a produção em elevada escala, trataram imediatamente de transferir o custo da moradia e transporte para o próprio trabalhador. Foram além, inclusive, quando passaram a delegar os custos dos serviços urbanos básicos, caso existentes, para o Estado.

Deste momento em diante, o que se observou foi a questão da moradia sendo resolvida pelas relações econômicas do mercado imobiliário, o que desencadeou, por sua vez, o surgimento de moradias precárias, como bem expõe Cândido Procópio Ferreira de Camargo et alii: "Surge no cenário urbano o que será designado "periferia": aglomerações, clandestino ou não, carentes de infra-estrutura, onde vai residir a mão-de-obra necessária para o crescimento da produção" (CARMARGO et alii, 1982, p. 25).

1. 3 - Urbanização e Especulação Imobiliária

Uma vez que a acumulação e a especulação imobiliária andavam juntas, a classe operária seguia o fluxo desses interesses. A explosão do preço dos terrenos fez com que se acentuasse a expulsão de pessoas para as áreas periféricas das cidades, áreas estas onde se avolumavam conjuntos de barracos e casas precárias, sem qualquer tipo Page 4 de infra-estrutura. Desse modo, Favelas, casas precárias da periferia e cortiços abrigam basicamente as classes trabalhadoras, cujas condições de alojamento expressam a precariedade dos salários. Essa situação tende a agravar-se, na medida em que se vêm deteriorando os salários. Para cobrir os gastos básicos, considerados mínimos,com nutrição, moradia, transporte, vestuário etc. (CAMARGO et alii, 1982, p. 45)

O inverso da ação praticada pelas indústrias não ocorreu. Com o aumento da quantidade de mão-de-obra, os salários dos trabalhadores permaneceram os mesmos, ou seja, limitava-se a cobrir somente os gastos com transporte e alimentação. A construção da casa própria era a única alternativa para o trabalhador menos qualificado, pois os baixos rendimentos não lhe garantiam a possibilidade de arcar com gastos de aluguel.

Moradia própria e precária era a solução ao alcance do trabalhador, e, ao mesmo tempo, uma dificuldade a mais, pois, a partir desse momento, o próprio operário arcaria com as despesas de sua habitação. Soma-se a isto o aumento dos gastos com transporte, uma vez que os trabalhadores, ao se instalarem nas áreas periféricas, deveriam percorrer maiores distâncias a caminho do trabalho, resultando em várias horas despendidas com locomoção.

As condições de vida de uma população são determinadas por vários fatores que, direta ou indiretamente são ligados às formas de produção e distribuição de riquezas, e, ao lado destas, posiciona-se a própria organização do espaço urbano, da infraestrutura e dos demais serviços da cidade.

Diferentemente do que ocorreu em países da Europa Ocidental, a industrialização na América Latina não absorveu o excesso de mão-de-obra (OLIVEN, 1988).

Atualmente, os países que estão se industrializando são "forçados" a adotar tecnologia que requer muito capital, fazendo com que a mão-de-obra seja de pouca utilidade em uma atividade altamente mecanizada e avançada.

Logo, a dependência econômica em relação à marginalidade quase que desaparece por completo, uma vez que os marginalizados não são incorporados ao mercado formal de trabalho.

Outra questão que surge a respeito da massa marginal é o papel que esta desempenha no mercado de trabalho.

Autores apontam no sentido de que a massa é muito maior que...

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