Moderno enfoque do acesso à justiça por meio do programa trabalho seguro

AutorLorena de Mello Rezende Colnago/Ben-Hur Silveira Claus
Páginas129-139

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1. Introdução

O escopo do presente artigo é uma nova leitura do direito ao acesso à justiça, a partir da superação da concepção individualista do Estado liberal para concretização da democracia social e dos fins do Estado no tocante à efetividade do acesso à justiça mediante atuação do Poder Judiciário Trabalhista no Programa Trabalho Seguro.

Inegável a atualidade do tema, é momento de analisar o nascimento dessa política pública institucional a partir do reconhecimento da ampliação das tarefas a serem promovidas pelo Estado em âmbito econômico e social, com vistas à ampliação do acesso à justiça.

O expressivo número de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais registrado nos últimos anos coloca o Brasil em quarto lugar no ranking mundial de acidentes fatais de trabalho da OIT1. De tal extrato sobressai o aspecto cultural relativo à ausência de uma política de prevenção e segurança do trabalho no país, além da falta de disposição e participação compromissada dos atores sociais envolvidos.

Os acidentes mais frequentes são os que causam fraturas, luxações, amputações e outros ferimentos. Muitos causam a morte do trabalhador. Na sequência, aparecem os casos de lesões por esforço repetitivo e Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (LER/Dort), que incluem dores nas costas. Em terceiro lugar, aparecem os transtornos mentais e comportamentais, como episódios depressivos, estresse e ansiedade2.

Entre as causas dos acidentes de trabalho estão: maquinário velho e desprotegido, tecnologia ultrapassada, mobiliário inadequado, ritmo acelerado, assédio moral, cobrança exagerada e desrespeito a diversos direitos3.

Nesse contexto acentuada a necessidade de expandir a visão preventiva dos infortúnios laborais, em inserção colaborativa que promova contínua conscientização transformadora do processo de produção e do meio ambiente do trabalho, fomentando, desde a formação dos cidadãos, a importância da educação para prevenção de acidentes segundo estratégias de redução de riscos, incorporando-as aos paradigmas e valores de todos os brasileiros.

Torna-se imprescindível, portanto, a implementação de ações que promovam o direito à saúde no trabalho. O Poder Judiciário trabalhista é chamado a atender diferenciada modalidade de demanda com a adoção de

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postura ativa na implementação de políticas públicas – especificamente enfocado o Programa Trabalho Seguro – ao encontro da moderna concepção do acesso à justiça, estudada na primeira parte deste trabalho.

Na abordagem seguinte a análise do nascimento do Programa a partir do Protocolo de Cooperação Técnica firmado pelo Tribunal Superior do Trabalho, Conselho Superior da Justiça do Trabalho, Ministério do Trabalho em Emprego, Ministério da Saúde, Ministério da Previdência Social e da Advocacia-Geral da União, ao qual aderiram todos os Tribunais Regionais do Trabalho e instituições públicas e privadas, com vistas ao fortalecimento da Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho. Posteriormente, o tema foi objeto de regulamentação na Resolução n. 96/CSJT4, examinada em prosseguimento.

Ao tempo em que se verifica a ampliação do conceito de acesso à justiça, emerge a expansão de mecanismos, a exemplo da atuação conjunta preconizada pelo Programa Trabalho Seguro, no âmbito do Poder Judiciário Trabalhista, atrelado à promoção da saúde do trabalhador, escopo desencadeado por instrumentos garantidores da cobertura de todos, do fortalecimento de capacidades institucionais e da implementação de estratégias de reinserção de trabalho, estabelecidas diretrizes específicas no normativo referenciado para efetivação do direito fundamental em questão (art. 7º, XXII, CRFB).

2. Do conceito clássico à moderna concepção de acesso

A ideia de acesso à justiça evoluiu, paralelamente, na passagem da concepção do Estado liberal para a visão social do Estado moderno. Na vigência do primeiro regime, a participação do Estado não ia além da declaração formal dos direitos humanos, ou seja, não passavam de meras declarações, destituídas de efetividade. Nessa época prevalecia o laissez faire, compreendida a justiça como qualquer outro bem, acessível àqueles que pudessem suportar os respectivos custos, pois todos eram presumidos iguais e a ordem constitucional era restrita à criação de mecanismos de acesso à justiça, sem qualquer preocupação com a eficiência prática ou efetiva.

O modelo da democracia liberal do século XIX era baseado em fatores de cunho individualista, no qual o indivíduo era a fonte do poder, dotado de primazia sobre a sociedade, de modo que toda conjuntura de direitos tinha por fim a conservação dos direitos naturais básicos, segundo a declaração francesa, notabilizadas normas assecuratórias da liberdade do cidadão, da segurança, da propriedade e resistência à opressão5.

“Numa concepção orgânica da sociedade, as partes estão em função do todo; numa concepção individualista, o todo é o resultado da livre vontade das partes”6.

Ao Estado caberia apenas fiscalizar a convivência social, segundo ordem jurídica pré-estabelecida, a fim de garantir o livre jogo de forças econômicas, regidas pelas leis de mercado, em prestígio à autonomia privada da vontade. Na esteira, o Poder Judiciário concebido tinha como propósito garantir a preservação da liberdade individual e a proteção da autonomia da vontade.

A visão tradicional do conceito de acesso à justiça partia da ideia de que constituía dever do Estado a solução do litígio, garantido o direito de acionar o Poder Judiciário, desprovido de qualquer conteúdo sócio-político. O acesso à justiça significava, deste modo, o mero exercício do direito de ação, em que consideradas apenas a posição do autor da demanda, na medida em que a atuação jurisdicional voltava-se tão somente às questões do direito invocado.

Assim é que, ao falar do tema, a imagem do senso comum que se consolidou a partir deste período remete ao acesso aos órgãos do Poder Judiciário, consubstanciado no direito do indivíduo de pedir ao Estado que solucione um conflito inconciliável, seja em face de particulares, pessoas físicas ou jurídicas, ou do próprio ente público.

No curso histórico seguinte, o liberalismo e as correntes neoliberais não puderam atender as exigências da sociedade em constante modificação, seguindo-se a alteração do método de tratamento político das exigências sociais, especialmente em razão da ferocidade incontrolável das questões econômicas. A sociedade moderna adquiriu a consciência de que insuficiente um estado de direito meramente formal, sem o

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fornecimento de instrumentos adequados e eficientes à realização concreta do direito material7.

Além das novas questões sociais, o surgimento das associações e sociedades intermediárias e as exigências de definições políticas rápidas resultaram no denominado welfare state, na conformação da democracia social ou participativa, engajada na proteção dos economicamente mais fracos.

A democracia moderna, assim, atingiu novo estágio. A lição de J. J. Calmon de Passos é lapidar a respeito:

O Estado abandona sua postura liberal, deixando de ser mero guardião das liberdades políticas para se tornar protagonista no cenário econômico. As bases políticas se ampliam, o sufrágio é, agora, universal, novos atores ingressam na cena política e novas demandas se colocam no mercado político. O social se insinua e se expande, em detrimento do individual, e a autonomia privada retrocede sob o impacto do dirigismo contratual, surgindo novas figuras negociais em que o conteúdo dos contratos é quase de todo subtraído ao poder dispositivo dos contratantes. O coletivo se faz presente no processo econômico e no processo político, transformando-se rapidamente a antiga socie-dade de vizinhos em sociedade de massa8.

A partir do século XX, o coletivo e o social passaram a ser o foco da política governamental e legislativa dos países do mundo civilizado, ampliado o enfoque das modernas Constituições atingindo também o direito e o dever do Estado em reconhecer e garantir a nova estrutura exigida pela sociedade após a integração das liberdades clássicas aos direitos sociais. Assim, a política constitucional deixou de atuar na simples tarefa de declarar direitos e passou a refletir a consciência social dominante, permitindo a concreta participação do cidadão na sociedade, inclusive por meio da realização do direito de ação, compreendido como direito de acesso à justiça, tornando-se objeto de preocupação dos mais modernos sistemas jurídicos9.

Não é surpreendente, portanto, que o direito ao acesso à justiça tenha ganho particular atenção na medida em que as reformas do welfare state têm procurado armar os indivíduos de novos direitos substantivos (...). De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação10.

Reconhece-se, assim, que as exigências da demo-cracia moderna são de outra ordem: proteção dos direitos mediante atuação do Estado e de mecanismos de acesso à justiça.

Na atualidade a compreensão do conceito conforma-se com a moderna percepção da função social do Estado, percebida pelos operadores do direito brasileiro, especialmente após o ampliado enfoque trazido pela Constituição de 1988, com a inserção dos “novos direitos” (sociais, coletivos e difusos) no panorama dos direitos fundamentais do cidadão, ao tempo em que reconheceu deveres do Estado em acepção garantista e democrática.

Em outras palavras significa que o acesso à justiça passou a abranger aspectos democráticos, de cidadania e de inclusão social, consagrando-se como pressuposto básico de um Estado Democrático de Direito, cujo sentido está...

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