Globalização e modernidade: uma aventura no espaço e no tempo

AutorSandro Ari Andrade de Miranda
CargoAdvogado Mestre em Ciências Sociais
Páginas25-30

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O título deste trabalho foi inspirado na obra Condição Pós-Moderna do geógrafo inglês David Harvey. Segundo este autor, "os seres humanos costumam produzir uma hierarquia acomodada de escalas com que organizar as suas ativi-dades e compreender o mundo" (Harvey, 2004, p. 107-8).

Em tempos pretéritos tais escalas tomavam como ponto de partida o corpo e os ritmos da natureza para medir o espaço e o tempo. Assim tínhamos pés, polegadas, côvados, cúbitos, pu-nhados, Morgens (manhãs ou acres em alemão), cestos, potes e outros (Bauman, 1999). Na lin-guagem do passado imemorial "o corpo servia de medida de todas as coisas" (Bauman, 1999; Harvey, 2004).

Essa realidade, contudo, mu-dou com o advento do Iluminismo e do Estado-nação, quando se tor-nou necessário constituir medidas impessoais e objetivas, que por um lado emancipassem a razão humana dos limites impostos pelos sistemas naturais e por outro constituíssem certeza e segurança para a atividade pública do fisco estatal, bem como para a acumu-lação capitalista.

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O controle do tempo e a administração do espaço são pontos centrais no planejamento da produção e para a obtenção de "mais-valia na fábrica". Tamanha a importância da delimitação espacial e temporal para a "nova ordem" firmada a partir do Iluminismo, que Marshall Bermann definiu a modernidade como uma experiência "do eu e dos outros", "das possibilidades e perigos da vida", e, também, "do espaço e do tempo" (Harvey, 2005, p.21).

O elemento escalar é apenas um dos aspectos que compõem o contrato que orientou a modernidade. O contrato social de Hobbes, Lo-cke e Rousseau "é a metáfora fundadora da modernidade ocidental" (Santos, 1999, p. 34).

Conforme afirma Boaventura de Sousa Santos (1999), nesta metáfora estão definidos critérios de inclusão e exclusão, de direitos e deveres, fundados em três pressupostos metacontratuais "racionalmente" elaborados: um regime geral de valores, um sistema comum de medidas, e um espaço e tempo privilegiados.

O regime geral de valores está assentado na ideia do bem comum e da vontade geral. O sistema comum de medidas baseia-se numa concepção de espaço e tempo homogêneos, neutros e lineares, que servem como denominador comum. É com base neste sistema que medimos o progresso "linear e contínuo", bem como o salário, o dinheiro, as mercadorias e o trabalho, tornando os riscos e danos mensuráveis.

Já o tempo e o espaço privilegiados foram conferidos ao Estado nacional, local de agregação, integração e gestão. É no espaço e no tempo nacional e estatal que são realizadas as atividades do cidadão, a deliberação política, o processo judicial e a ação burocrática do Estado. Por isso, além de escala, ele é "um ritmo, uma duração, uma temporalidade" (Santos, 1999, p. 35-36).

Zygmund Bauman (1999, p. 36) destaca que "o que é formalmente legível ou transparente para alguns pode ser obscuro e opaco para outros". Já Boaventura de Sousa Santos afirma que as escalas são ao mesmo tempo dispositivos que criam um campo de visão e estabelecem uma área de ocultação. "O que se faz relevante numa escala não se manifesta automaticamente em outra" (Harvey, 2004, p. 108).

Para o sociólogo português, ao mesmo tempo em que o tempo e o espaço nacional e estatal abriram campo para a atuação do cidadão racional, dotado de direitos e deveres, de liberdade e igualdade formais, ocultou as formas de dominação que existiam na fábrica, no ambiente doméstico, e excluiu do contrato social a natureza e todas as formas que simbolizassem a "imprecisão", a "irracionalidade" e a "violência não legítima"1.

O controle do espaço e do tempo confinados no ambiente nacional e estatal entra em crise no final da década de 1960, com a emergência de "novos atores políticos", da "globalização" e da "crise ecológica". A "humanidade" vinha acompanhando, após o "ciclo negativo" das duas grandes guerras e da quebradeira de 1929, um processo de crescente progresso derivado do sucesso obtido com a associação entre o mercado e o estado, do fordismo (americano) e do keynesianismo (britânico).

Tais associações encontraram na organização rígida e controlável do Estado nacional um ambiente favorável a seu pleno desenvolvimento. Baseavam-se num "acordo coletivo" que garantia através da produção crescente, um salário relativamente estável, no regime de pleno emprego das democracias ocidentais, que sustentava o consumo das mercadorias da indústria capitalista e, como consequência, bons lucros para os proprietários dos bens de produção. O bom funcionamento da economia garantia a atividade financeira do Estado, agente "fiador" do regime de acumulação.

Mas o sucesso deste acordo sofreu um abalo na década de sessenta, permitindo a emergência de movimentos políticos conservadores e da contestação do Estado como agente estabilizado da economia.

A crise do modelo fordista-keynesiano foi originada por diversos fatores, como o aumento dos preços das matérias-primas e das fontes energéticas, a crise financeira do Estado, além da pressão das reivindicações dos agentes sociais que ficaram fora dos benefícios do contrato social, como os negros, mulheres, indígenas, ecologistas e todos aqueles que compunham a "nova esfera pública".

Essa combinação de fatores desferiu um golpe mortal contra a estabilidade do regime. A sociedade idealmente homogênea de cidadãos iluministas confinados no espaço e tempo nacional-estatal revelou-se, através do agravamento das tensões sociais, conflitiva e fragmentária (Harvey, 2004, 2005; Ianni, 2004; Kumar, 2006).

A resposta do capitalismo à crise foi a adaptação e aproveitamento das...

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