O mito de Don Juan e a subjetividade moderna

AutorPaulo Victor Bezerra - José Sterza Justo
CargoDoutorando em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia e Sociedade pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Assis, SP, Brasil - Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Páginas72-95
1807-1384.2014v11n2p72
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não
Adaptada.
O MITO DE DON JUAN E A SUBJETIVIDADE MODERNA
Paulo Victor Bezerra
1
José Sterza Justo2
Resumo:
A lendária figura de Don Juan habita o imaginário popular com vivacidade e
extensão dignas de um mito, apesar de seu pouco reconhecimento enquanto tal, na
literatura científica. O objetivo deste artigo é verificar se Don Juan pode ser
entendido como um mito moderno; compreender sua natureza mítica e a sua relação
com o homem moderno. Buscamos nos orientar por uma análise estruturalista e
histórica de duas obras literárias sobre Don Juan: a escrita por Tirso de Molina, em
1630, e a de Molière, escrita em 1665. As análises realizadas permitem sustentar
que Don Juan é um mito tipicamente moderno ao se constituir por narrativas que
pinçam, dão forma, concretude e inteligibilidade a um mundo e a um homem
nascentes sob os signos do individualismo, da burla da lei, do hedonismo, da
arrogância e ousadia, forjados a partir da sexualidade.
Palavras-chave: Mito. Don Juan. Subjetividade. Modernidade. Estruturalismo.
Deveríamos definir o homem como
animal symbolicum, não como rationale.
(Ernst Cassirer, 2005, p. 12).
1 INTRODUÇÃO
A lendária figura de Don Juan, como um homem galã, conquistador e sedutor
de mulheres, habita o imaginário popular, ainda que não seja reconhecida com esse
nome e nem remetida às obras literárias as quais consagraram e mantiveram esse
mito, ao longo do tempo. Sua imagem está profundamente associada a um
determinado tipo de personalidade e conduta, a um estilo de pensar e agir
virtualmente presente em nós, sendo inúmeras as menções a essa figura como um
1 Doutorando em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia e Sociedade pela
Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Assis, SP,
Brasil. E-mail: paulusvictorius@gmail.com
2 Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, SP, Brasil. E-mail:
sterzajusto@yahoo.com.br
73
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.11, n.2, p.72-95, Jul-Dez. 2014
mito, como algo que transcende a dramaturgia ou a literatura e se enraíza
profundamente na cultura oral.
Embora boa parte dos trabalhos acadêmicos sobre Don Juan se situem no
campo da crítica literária, não é incomum encontrarmos escritos sobre um
“donjuanismo” também no âmbito da Psiquiatria, das Psicologias e da Filosofia. Seja
para enquadrar subjetividades como padrões de desorientação e adoecimento, seja
para considerá-la como potencial caminho dos desejos inconscientes ou, então,
como uma estilística de existência, a figura de Don Juan é tomada como exemplo
paradigmático.
Historicamente, a primeira escrita sobre Don Juan surge em 1630, na pena
de um frade dramaturgo, o qual assinava como Tirso de Molina. Não tardou para
que essa estória ganhasse projeção e passasse a reencarnar, de tempos em
tempos, outras modalidades artísticas. Destarte, a saga de Don Juan foi reescrita
por Molière, em 1665; tornou-se “a mais perfeita obra já vista”, nos arranjos e na
batuta de Mozart (1787); virou poema épico na obra de Byron (1819-24); foi
filosofado por Kierkgaard (1843) e poetizado por Baudelaire (1861), além de ter sido
retratado em inúmeras pinturas. Ademais, adentrou o cinema através das lentes de
Bergman (1960) e foi representada por Brigitte Bardot (1973), até que, mais
recentemente, nos foi narrada por José Saramago (2005). Isso, para citar suas
recriações mais famosas.
Em nossa Dissertação de Mestrado (BEZERRA, 2011), trabalhamos com a
ideia de que esse tema, dada sua notável envergadura, é uma excelente forma de
análise das transformações que tomaram curso na subjetividade moderna. Nossa
hipótese encontrou boa ressonância, na medida em que observamos que as
releituras desse enredo se configuram, na verdade, como atualizações. Entre outras
coisas, pudemos concluir que, a despeito de haver um reposicionamento de
algumas instituições de acordo com o período em que a estória foi reeditada,
uma problemática central a qual se mantém praticamente inalterada.
Neste artigo, pretendemos expor e analisar o núcleo fundamental o plot
em torno do qual tantas releituras e atualizações foram possíveis. Com isso,
acreditamos poder traçar um percurso dessa figura e de seu correspondente modo
de subjetivação que emergem com a nascente modernidade, no século XVI, e se
prolongam, com modificações, até os dias atuais.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT