O mito na carne: a desfiguração e reconfiguração dos animais de produção pela linguagem

AutorMilla Benicio
CargoBacharela em Comunicação Social (UFRJ)
Páginas251-283
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A5 V7 JD2010 |
O


Milla Benicio*
R Este artigo propõe uma reexão sobre a dinâmica de
desguração e reconguração dos animais de produção dentro do
universo verbal, buscando apontar suas representações históricas
como construções ideológicas naturalizadas por discursos social
e economicamente hegemônicos. Para tanto, dedicar-nos-emos a
duasesferasde pesquisaadialética internadearticulação entreum
signicantee umsignicadoe adistorção dosignodela resultante
Esse duplo movimento se dá a partir da tensão entre fala e silêncio, e
tem como resultado a transformação do bicho enquanto ser singular
em um conceito generalizado, desde o nível mais primário da formação
do conceito até sua utilização pela publicidade. O fetichismo do
animal como mercadoria liga-se, portanto, a uma alienação primeira
da linguagem. Para aprofundarmo-nos nessas questões, guiaremo-
nos pelo pensamento de dois teóricos da linguagem, fortemente
inuenciados pela doutrina marxista Mikhail Bakhtin e Roland
Barthes. Contaremos também com a contribuição de autores ligados
à causa animal, como Florence Burgat e Elizabeth de Fontenay. Por
mpara situarmoso imagináriobrasileiro dentrodessa construção
teórica, analisaremos um corpus de dez comerciais de produtos da
SadiadentrodacampanhaAvidacomSémaisgostosa
P Animais de produção Desguração Linguagem
Publicidade. Alienação.
* Bacharela em Comunicação Social (UFRJ), pós-graduanda em Língua Francesa e Litera-
turas Francófonas (UFF), mestre em Letras (UFRJ), doutoranda em Comunicação e Cul-
tura (UFRJ) e professora nos cursos de Direito e Relações Internacionais (Unilasalle-RJ).
|RBDA
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A This article proposes a reection on the animals for
slaughter reconguration and disgurement dynamics within the
verbal universe. Thus, we aim to point out its historical representations
and ideological constructions naturalized by social and economically
hegemonic discourses. To this end, we will dedicate ourselves to
two spheres of research the inner dialectic of articulation between
a signier and meaning and the further distortion of its resulting
sign. This double movement occurs with the tension between speech
and silence, and results in the transformation of the animal, a unique
being, in a generalized concept, since the most primary level with the
development of the concept to its using in advertising. The fetishism
of the animal as a commodity is bound, therefore, to a primary
alienation of the language. To go deeper on these issues, we will guide
ourselvesbythethoughtoftwolanguagetheoristsheavilyinuenced
by Marxist doctrine Mikhail Bakhtin and Roland Barthes Wewill
also count on the contribution of authors bounded to the animal cause
as Florence Burgat and Elizabeth de Fontenay. Finally, situating the
Brazilian social imaginary within this theoretical framework, we
analyzea selectionof ad vertisingcampainsof Sadia products
withinthecampaignLifewithSisbeer
K Animals for slaughter Disgurement Language
Advertising. Alienation.
SOsignicadoanimalOanimalcomoumafalaroubada
OmitonapublicidadeBibliograa
OSignicadoAnimal
O animal sempre esteve presente na constituição da lingua-
gem, e consequentemente, da identidade humana. Desde as
pinturas rupestres, que chegaram aos nossos tempos como as
primeiras manifestações do homem no terreno da linguagem,
osbichos jáguravamcomo elementosnucleares derepresen-
tação. Entretanto, foi no universo verbal que melhor pudemos
notar essa representação como uma construção ideológica.
Isso se deve a uma característica inerente à palavra, sua ubi-
quidade social Segundoo linguistaMikhail Bakhtinelapene-
tra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas re-
lações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros
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A5 V7 JD2010 |
fortuitosdavidacotidiananasrelaçõesdecaráterpolíticoetc
(BAKHTIN, 1995, p. 40).
Observando, portanto, a evolução histórica da representação
do animal pela palavra, melhor compreenderemos a apropriação
desse signo na contemporaneidade, objetivo do presente artigo.
São, portanto, duas esferas de pesquisa. A primeira refere-se à
dialéticainterna dearticulaçãoentre umsignicanteeumsig-
nicadoeasegundaaoesvaziamentodosignodelaresultante
para a construção de uma fala interessada, mas pretensamente
natural.
O ponto de partida para tal investigação deve ser a concep-
çãodalinguagemcomo umfatosocialaprópria palavraseria
nesse sentido, um fragmento material da realidade, tendo sua
signicaçãoinstituídapelohomemPodemosentãoarmarque
é no convívio social que se estabelece a convenção. O signo é,
pois, dialético, já que essas relações de sentido acabam sendo
reelaboradas pelos indivíduos em sua fala, gerando diferentes
índices sociais de valor ao longo de nossa história. Ainda de
acordocomBakhtin
Aspalavrassão tecidasapartirde umamultidãodeos ideológicos
e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios.
É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível
de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas
despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram
caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A
palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações
quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir
uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de
engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz
de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das
mudanças sociais. (Idem)
O ato de nomear os outros animais, de reconhecê-los pela lin-
guagem, é um gesto particularmente recorrente desde o nasci-
mentodascivilizaçõesepermitiuaoserhumanodenirseasi
próprio em diferentes contextos históricos. Acompanhar a evo-

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