Direitos das minorias: cidadania universal ou privilégio?

AutorLoreley Garcia

Loreley Garcia. Professora Associada II DCS/UFPB, PPGS e Prodema. Vice-coordenadora do Laboratório de Estudos Ambientais.

Para a democracia, o abandono das instituições públicas, onde os cidadãos são iguais, é mais funesto que a má distribuição de rendas. Walzer (1992) ressalta que o princípio da igualdade não é garantido pela distribuição igualitária da renda, mas quando se fixam os limites do imperialismo de mercado, que tem o poder de transformar todos os bens sociais em mercadorias e o dinheiro passa a ter domínio sobre outras esferas, além da econômica. Para resistir ao poder do mercado globalizado é imprescindível que haja articulação da sociedade. Ou, como coloca Touraine (1996), requer filiação social e cultural.

O eixo central da democracia é a idéia de soberania popular, a ordem política produzida pela ação humana. A democracia provém dos apelos éticos de liberdade e justiça. A vida política seria a tentativa de equilibrar as decisões políticas e jurídicas com uma nova moral social que defende o interesse das minorias. Democracia é um dos componentes da interação social que coloca o Estado de direito no interesse dos dominados, ou uma forma de compensar a desigualdade social através dos direitos morais.

Democracia significa limitação do poder, inclusive do poder do Estado. Touraine cita os clássicos da política: Locke, Rousseau e Tocqueville, para reforçar a idéia de que a democracia não se resume a um mero apelo por uma igualdade de direitos abstrata, mas significa o combate a desigualdade a partir do acesso às decisões públicas.

No Estado Moderno a política tratar da ação do poder sobre a sociedade e não mais da criação da comunidade política, a politéia aristotélica. Para Touraine (1996), manter a liberdade idealizada pelos antigos e seu conceito democracia na Modernidade, destrói a idéia de liberdade a serviço das liberdades sociais. A formação do Estado no mundo contemporâneo se dá com o surgimento da categoria do social. Sendo a sociedade entendida como o conjunto das relações sociais de conflito e de cooperação. Uma sociedade é democrática quanto maior for o número de atores que participam das decisões que vão gerir seus destinos.

Touraine não acredita ser possível a alocação da esfera política sobre a social. È Hannah Arendt (1981) quem opõe o mundo econômico/social à esfera do político / liberdade, como se uma esfera atuasse contaminando a outra. Para o autor, a idéia dos direitos sociais fortalece os direitos humanos.

Em Arendt, o indivíduo é um ser político e um ser social, vive com o Outro, já que necessita de companhia, afeição e amor, ou cooperação. "Um ser interdependente material e social, assim como ontologicamente". As dimensões humanas pública e social são diferentes em ordem de existência: 1- o ser como público pode criar o espaço público e, como ser social, não pode. 2- como ser público pode juntar-se a outro e falar formalmente, como ser social fala com a parte interna. O respeito mútuo regula o espaço público, o decoro e a compostura; já no espaço social é o sentimento, a proximidade e a intimidade que regulam as relações.

Assim como a emoção, a interdependência econômica reduz o espaço entre os seres que se unem, não pelo interesse, mas por uma necessidade comum. Sua qualidade de ser público precisa do espaço público para desenvolver o senso de realidade e identidade, como ser social vê no espaço público um obstáculo a realização de seus desejos individuais.

O mundo está intimamente relacionado ao local da nãoaparência. Os indivíduos não podem desempenhar um papel sempre, precisam de tempo para se ocultar da crítica dos pares; precisam de espaço público e privado, da família e amigos. Em Arendt, a confusão entre o político e o social tende a explicar a vida política em termos sociais e questiona como o social, ou a interdependência material entre os seres, pode ser facilitada através da criação de condições o desenrolar da cooperação social. Aqueles que confundem a esfera do social com a do político, são incapazes de apreciar o indivíduo enquanto um ser público, não questionam a necessidade do espaço público, nem como a comunidade se organiza e provê no interior do espaço da aparência.

A orientação socializante da tradição da filosofia política obscurece a dimensão política da existência humana, reduzindo a comunidade política à sociedade civil com mando político. Uma filosofia política satisfatória não pode se desenvolver sem que haja clara distinção entre as dimensões públicas e sociais da existência humana e suas conseqüentes implicações, reforça Parek (1981). Além disto, estamos acostumados a ver a política inserida nos domínios da sociologia, sendo um aspecto da sociedade que tentamos explicar a partir de categorias sociológicas. Assim, todo o sistema político se resume a um subsistema do social entendido como função social e efetiva dos compromissos definidos pelos membros de uma classe ou posição social.

Hannah Arendt refuta essa visão e pensa para além da sociedade, a vida política seria um cosmos com auto-movimento do qual somos parte. Essa mudança de ênfase sugere a superação da idéia de indivíduo como célula do corpo social, confronta o sociologismo na defesa da liberdade humana, anti determinista e sem submissão ao destino social (Canovan,1974).

Em verdade, Arendt não opõe, mas separa as esferas na tentativa de resgatar o mundo do político e analisá-lo a partir de categorias políticas. Para ela, não satisfaz analisar o político a partir da ótica do social e do econômico, já que o político tem suas próprias categorias.

Touraine concorda que só existe democracia quando existe espaço político que proteja os direitos dos cidadãos contra o Estado; quando a distancia que separa Estado da vida privada é reconhecida e garantida pelas leis e instituições; quando o Estado e a sociedade civil se ligam através da representatividade de seus dirigentes.

A democracia tem três dimensões: respeito aos direitos fundamentais, cidadania e representatividade. Paralelamente, podemos pensar em três tipos de democracia: aquela centrada nos direitos fundamentais (Inglaterra), outra com base na cidadania e na constituição (EUA) e, uma terceira forma que fortalece a representatividade contra a oligarquia (França). A democracia não se define pela separação dos poderes, mas pela natureza dos elementos que se colocam entre a sociedade civil, a sociedade política e o Estado, o espaço público onde atores sociais orientam os representantes no Estado. Assim, a interdependência entre todos esses elementos, constitui a democracia.

Outro aspecto essencial seria o pluralismo, considerando que a sociedade civil é, em si mesma, plural. A vida política é dominada pela pluralidade de grupos sociais e não pela unidade do Estado. Em Touraine, a democracia no mundo moderno deve estar além da mera representação, cidadania e direitos que não bastam para a democracia. Os direitos fundamentais dão garantias legais, ocorre a intervenção do Estado para proteger os mais fracos. Cada vez mais, a ação democrática baseia-se na associação que protege o povo contra o poder e permite que tenha o controle sobre a própria existência. O poder do Estado está limitado pelos direitos fundamentais, cujos principais adversários são os regimes totalitários –no qual o Estado define os direitos- e os regimes autoritários quando os direitos existem, mas são desrespeitados.

Para Touraine o efetivo exercício da democracia se dá quando ocorre a superação da dicotomia entre interesses da esfera social e a político, após a instauração do sufrágio universal (1848), na França; e quando as instituições políticas acolhem as demandas sociais contra os interesses dominantes. A democracia, nesta perspectiva, deveria suas bases ao movimento operário e á ruptura com o Iluminismo para criação de uma sociedade aberta com pluralismo de valores.

A democracia de bases sociais pressupõe a correspondência entre a demanda social, ou categorias sociais e os partidos políticos. O autor coloca que onde as classes e conflitos eram palpáveis, como na Inglaterra, a democracia foi estável e o regime social-democrata fortalece a democracia entre os partidos operário e burguês. Já nos locais onde o Estado atuou como agente modernizador, mantendo a hierarquia social e econômica, a democracia foi fraca, como o caso da América Latina. No mundo globalizado, as comunidades encontram-se esfaceladas, uma nova sociedade não surgiria através do contrato, mas da modernização destas sociedades.

Para haver representatividade, é imperioso que as categorias sociais sejam capazes de se organizar de forma autônoma no plano social, fora da vida política. Seria função dos sindicatos, partidos trabalhista ou socialista formam os elos entre a vida social e a política. Atuam de modo indireto as associações, os grupos, a imprensa, orientando na escolha política, formação de partidos, etc.

Em Touraine, a crise de representação política é responsável pelo enfraquecimento da participação. A sociedade agora é multifacetada, não se restringe apenas ao interesse de empregados e empregadores. Na sociedade de consumo e comunicação de massas, com mobilidade social, migração, multiculturalismo, ambientalismo, feminismo e uma série de demandas transclassistas, os partidos não dependem das relações entre as classes sociais, mas representam demandas que lhes confere o caráter de estuário de lutas sociais e projetos de vida coletiva.

Antigamente o partido detinha o monopólio do sentido da ação coletiva, a expressão da consciência da classe em si, quando a polarização entre proletários e burgueses atingia a fase aguda. Na transmutação das demandas para a reivindicação da liberdade, da defesa do meio ambiente, contra a comercialização da vida, o ator passa a ser responsável pela constituição de um sentido para a ação.

O partido que incorpora a consciência de uma classe impede a democracia, define ele mesmo o sentido da ação, colocando os...

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