Ministério Público ? Prevenção e Repressão das Cláusulas Abusivas nos Contratos de Consumo

AutorHeloisa Carpena
CargoProcuradora de Justiça (MPRJ)
Páginas11-28

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1. Introdução: breve histórico da proteção contratual do consumidor pelo MP brasileiro

O controle das cláusulas contratuais abusivas está associado à atuação do Ministério Público desde os primórdios da defesa do consumidor no Brasil, que tem como marco inicial a edição da Lei 7.347/85, a qual instituiu a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

Embora haja registros de iniciativas institucionais anteriores a essa lei1, foi a partir da definição legal dos interesses metaindividuais que a proteção contratual do consumidor passou a existir em sua dimensão coletiva. Naquela época, que pode ser considerada a primeira fase da defesa dos consumidores brasileiros, em matéria contratual predominavam as questões relativas à prestação de serviços essenciais, sobretudo educação e saúde. Não por acaso, a primeira decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto foi proferida em ação civil pública proposta pelo MP contra instituição educacional, na qual se discutia a cobrança abusiva de mensalidades escolares, e cujo ponto controvertido foi precisamente a sua legitimidade ativa2.

Somente em 1991, com o advento do Código de Defesa do Consumidor, o controle da abusividade dos contratos, fundado no princípio da boa-fé objetiva, foi estruturado e atribuído primordialmente ao Ministério Público. Com efeito, a Lei 8.078/90, em sua redação original aprovada pelo Congresso Nacional, no capítulo da proteção contratual, instituía o controle abstrato e preventivo das cláusulas abusivas, nos seguintes termos:

Art. 51 – [...]
§ 3º – O Ministério Público, mediante inquérito civil, pode efetuar o controle administrativo abstrato e preventivo das cláusulas contratuais gerais, cuja decisão terá caráter geral.

Art. 54 – [...]
§ 5º – Cópia do formulário-padrão será remetida ao Ministério Público, que, mediante inquérito civil, poderá efetuar o controle preventivo das cláusulas gerais dos contratos de adesão.

Os dois dispositivos foram objeto de veto presidencial, fundado na sua inconstitucionalidade, pois “a outorga de competência ao Ministério Público para proceder ao controle abstrato de cláusulas contratuais desfigura o perfil que o Constituinte imprimiu a essa instituição (CF, arts. 127 e 129)”.

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Apesar de não haver, evidentemente, inconstitucionalidade nas referidas normas, visto que o desempenho da função estaria conforme à missão institucional de defesa dos interesses sociais, razões de ordem prática levam à conclusão de que o veto não reduziu, antes aprimorou, o controle da abusividade contratual. De fato, seria inviável o efetivo controle administrativo, não só pela notória falta de recursos materiais à época para desempenho da tarefa, como pelas controvérsias que a necessidade de aprovação prévia certamente ensejaria. A possibilidade de questionamento em juízo da decisão do órgão ministerial, a falta de uma divisão de atribuições a nível nacional (que até hoje persiste!), sem falar nas possíveis aprovações equivocadas, que dificultariam o controle judicial, são razões de sobra para aplaudir o veto, ainda que mal fundamentado.

O controle abstrato, a despeito do veto, continua sendo juridicamente possível, e o controle concreto das cláusulas contratuais que regem relações de consumo permanece atribuído ao Ministério Público por norma expressa do CDC, que estatui:

Art. 51 . [...]
§ 4° É facultado a qualquer consumidor ou entidade que o represente requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser declarada a nulidade de cláusula contratual que contrarie o disposto neste código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes.

Em que pese os termos restritivos da norma, a tutela coletiva dos consumidores pode ser promovida por outros autores ideológicos de forma concorrente e autônoma, o que vem ocorrendo com frequência e sucesso na prática forense.

2. Fundamento da abusividade das cláusulas contratuais

No vasto campo da proteção contratual, a lei especial criou diversos instrumentos voltados à compensação da posição de vulnerabilidade em que se encontra o consumidor. Tais instrumentos destinam-se aos diferentes momentos do iter contratual: na formação do contrato, em sua execução e na fase posterior ao cumprimento das obrigações principais. Em todas estas etapas, observa-se a incidência do princípio da boa-fé objetiva, cânone interpretativo, limite ao exercício de direitos e criador de deveres anexos.

A boa-fé se espraia pelas normas do CDC que regulam a atividade de controle dos contratos de consumo, a qual se opera em três vertentes, a saber:

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(i) garantia da informação ao consumidor; (ii) manutenção do equilíbrio entre as prestações; (iii) proteção contra a abusividade.

No primeiro aspecto, o legislador cuidou da prevenção, buscando dotar o contratante vulnerável de dados suficientes sobre a contratação que lhe permitam manifestar de forma consciente sua vontade no momento da formação do vínculo. Para tal finalidade, há regras expressas e cogentes criando deveres de informação ao fornecedor, gerais (CDC, art. 54, §§ 3° e 4°) ou especiais (CDC, art. 52), cujo descumprimento pode provocar tanto a sua vinculação (CDC, art. 48) como a ineficácia das
disposições (CDC, art. 46) ou a nulidade, como
veremos a seguir. Todas estas regras têm origem
no direito básico do consumidor previsto no art.
6°, III, do Código, de caráter instrumental, eis
que visa a possibilitar o pleno exercício do direito
de escolha, o qual, em última análise, permite
a proteção das expectativas legítimas e assegura
uma atuação útil no mercado de consumo3.

No momento da performance contratual,
assume destaque outro direito básico do consumidor, o direito ao equilíbrio contratual, contido no inciso V do mesmo art. 6° do CDC, que permite a revisão ou modificação do conteúdo do contrato, das cláusulas contratuais que se tornaram excessivamente onerosas.

A preocupação com o equilíbrio econômico, no sentido de equivalência das prestações em um contrato de consumo, tem suas raízes na ideia de boafé objetiva e na função social do contrato, pois interessa não apenas às partes, mas a todo o grupo social, que o contrato seja e permaneça útil e justo. A lei consumerista brasileira garante ao consumidor a manutenção do sinalagma, reconhecendo somente a ele (e não ao fornecedor) o direito à revisão e modificação das condições contratuais atingidas por fatos posteriores à celebração que venham a romper o equilíbrio das prestações. Com fundamento neste direito básico, pode o consumidor pretender a revisão ou a modificação da cláusula que comprometa o desejado equilíbrio em bases objetivas, sem contemplação de condições pessoais, como o conhecimento das partes ou a previsibilidade da mudança das condições, compreendidas como risco do empreendimento, a ser suportado exclusivamente pelo fornecedor que, em nenhuma hipótese, poderá transferi-lo ao consumidor. A fórmula do CDC acolhe a teoria da base objetiva de Larenz, mais ampla que a teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva, previstas na lei civil (arts. 317 e 478 do Código Civil brasileiro).

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O terceiro instrumento da proteção contratual do consumidor talvez seja o de maior importância e o mais frequentemente utilizado: o controle da abusividade. Desde os primeiros tempos de vigência do código, o tema mereceu grande atenção da doutrina4e da jurisprudência, a revelar sua proeminência numa sociedade de relações crescentemente contratualizadas5.

A despeito do elevado nível de proteção do consumidor brasileiro, o fenômeno da abusividade na matéria contratual persiste como uma das principais questões a serem enfrentadas para efetivação de seus direitos.

Surgiram então várias questões afetas a esta temática, a começar pela definição da natureza jurídica das cláusulas abusivas no CDC. A referência à abusividade no CDC não prescinde de uma análise, ainda que reduzida pelos limites do presente estudo, do ato abusivo. A questão é polêmica e nossa posição diverge do pensamento mais difundido em doutrina, que rechaça a identificação da abusividade no direito do consumidor com a teoria do abuso do direito, formulada pelo direito civil.

A baixa aceitação do abuso como categoria autônoma, distinta do ato ilícito, é atribuída, em uníssono pelos doutrinadores, à “insegurança teórica que cercava o instituto”6. De fato, sob a égide do Código Civil revogado, o instituto penetrou no ordenamento brasileiro de forma tímida, tendo sido referido a contrario sensu como exercício irregular de direito (art. 160, I). A nova codificação, no entanto, concedeu destaque ao abuso, introduzido por meio de norma inspirada no Código Civil português7, que equipara as duas categorias, o ilícito e o abusivo.

A adoção de uma interpretação literal da norma conduz a conclusão, data venia, equivocada. O ato se qualifica como ilícito quanto há norma prevendo uma determinada proibição e a conduta descumpre o preceito. O ato abusivo, por seu turno, será identificado a partir da constatação de que há um descompasso entre a conduta, inicial ou aparentemente legítima, e a finalidade pela qual o ordenamento garante ao titular determinada prerrogativa individual. Não há previsão legal!

O fato de ensejarem os mesmos efeitos não iguala os dois tipos de atos antijurídicos, quando muito os assemelha, persistindo contudo a fundamental diferença quanto à natureza da violação e, por via de consequência, quanto à necessidade de expressa previsão da conduta...

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