Ministério público do trabalho e a liberdade sindical

AutorUlisses Dias de Carvalho
CargoProcurador do Trabalho
Páginas240-254

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Introdução

O modelo sindical criado a partir da Constituição Federal de 1988 vive na atualidade o paradoxo de não refletir a realidade do corporativismo brasileiro. A autonomia criada pelo legislador constituinte não garantiu a efetivação da liberdade sindical plena aos trabalhadores. Estes, por sua vez, já não se veem representados pelos sindicatos. As entidades sindicais foram integralmente integradas ao aparelho estatal (vide a edição da Lei n. 11.648, de 31 de março de 2008, que disciplinou as Centrais Sindicais, tornando-as entidades sindicais de cúpula). E o Estado utiliza dessas entidades para legitimar sua vontade política e ideológica em temas que interessam (ou não) a toda a sociedade.

Dentro deste panorama, tentar-se-á no presente estudo analisar qual é o tipo de contribuição que o Ministério Público do Trabalho, ramo do Ministério Público da União a quem incumbe a defesa da ordem jurídica posta, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis junto aos órgãos da Justiça do Trabalho (art. 127 da CF/1988 c.c. art. 83 da Lei Complementar n. 75/1993), pode dar para a efetivação da liberdade sindical dos trabalhadores.

O trabalho será segmentado em três partes: na primeira, faremos uma breve análise do sindicalismo no Brasil, desde a origem do movimento sindical ainda no final do século XIX até os dias atuais. Na segunda parte, realizaremos breve apanhado acerca dos principais aspectos da liberdade sindical. Na terceira e última parte, discutiremos acerca do papel do Ministério Público na efetivação da liberdade sindical, bem como sobre os instrumentos e as possibilidades colocados à disposição do Parquet para o desempenho desta tarefa.

1. O sindicalismo no Brasil

O sindicalismo brasileiro sempre esteve ligado à estrutura do Estado.

Desde que os primeiros núcleos representativos de trabalhadores começaram a surgir, eles foram cuidadosamente tutelados pela força estatal. São exemplos dessa regulação os Decretos ns. 979, de 1903, e 1.637, de 1907, que, respectivamente, disciplinavam já no início do século XX a atividade sindical rural e urbana (mesmo que, na prática, essas entidades fossem escassas e destituídas de verdadeira representatividade).

Observe-se que, antes do início do século XX, não se pode falar em atividade sindical no país. Vários são os fatores que contribuíram

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para isso: a proibição da existência das Corporações de Ofício pela Constituição Imperial de 1824, a adoção de mão de obra escrava, o baixo nível de industrialização, a predominância da atividade rural, que dificulta a união entre os trabalhadores, o baixo nível educacional da população e a consequente ausência da consciência de um ideal de comunidade e de respeito aos direitos sociais, dentre outros.

A partir do momento em que os imigrantes europeus e asiáticos começaram a aportar no Brasil, novos ventos ideológicos começaram a surgir. Agregue-se a isso o fato de que o processo de industrialização em certas localidades do país fez com que parcela significativa da população brasileira passasse a viver nas cidades, circunstância que facilitou o surgimento de demandas vinculadas a questões sociais e a propagação de ideias associativas entre os trabalhadores.

Nesse momento inicial, os ideais do sindicalismo estavam vinculados a doutrinas anárquicas e marxistas. Era o início do século XX. Época da explosão da Revolução Russa, em que noções das teorias marxistas e comunistas eram discutidas por grupos de trabalhadores nos incipientes pátios das fábricas. Pregava-se o fim do Estado como conhecido. Propunha--se a reestruturação da ordem, a ruptura dos limites impostos pelo Estado, a adoção de um Estado socialista, em que os bens de produção seriam partilhados entre os trabalhadores1.

Como esses ideais não eram adotados pelos "donos do poder", o anarcossindicalismo não teve muitos adeptos no país. Esse movimento durou até por volta de 1920, ocasião em que passou a vigorar no Brasil o sistema corporativista de Estado.

A partir da década de 20 do século passado, diversas manifestações populares questionavam o modus operandi adotado pela política da chamada República Velha. Esse ambiente conturbado, unido a ideais revolucionários de origem europeia e à crise econômica do final da década, levaram à assunção de Getúlio Vargas ao poder e, em consequência, ao aumento dos poderes do Estado brasileiro.

Nesse panorama, surge o corporativismo estatal. O Estado passa a conduzir todos os aspectos do sindicalismo, deixando a atividade sindical de constituir-se em uma manifestação espontânea de trabalhadores, para ser um movimento conduzido pelas estruturas de poder. Foi proibida a sindicalização dos funcionários públicos, empregados domésticos, a filiação do sindicato a entidades internacionais, sem autorização expressa

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do governo e qualquer atividade política e propaganda de ideologias consideradas sectárias, de caráter social ou religioso2.

É criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, que passa a emitir diretrizes às entidades sindicais, consideradas à época como possuidoras de funções públicas delegadas.

Com a edição da Consolidação das Leis do Trabalho em 1943, em 1° de maio, todo o processo de criação e funcionamento dos sindicatos é detalhadamente normatizado. As entidades sindicais tornam-se instrumento de legitimação da ação governamental.

Sobre esse período, Fábio Túlio Barroso afirma que3:

A característica política deste período, principalmente inicial, se estabelece na negativa da contenda de classes entre os atores do tecido produtivo, a integração do conflito dialético por natureza, tendo como sujeito ativo o Estado controlador e onipresente.

(...)

Contudo, este instrumento de integração do conflito de interesses decorrente da dialeticidade de classes não foi imune a uma dura atividade repressiva por parte do Estado, principalmente levando-se em conta os movimentos operários de esquerda e recalcitrantes ao controle das entidades de classe do poder público

(...)

É desse período a criação da Justiça do Trabalho, a quem competia solucionar conflitos de natureza trabalhista por intermédio das Juntas de Conciliação e Julgamento, órgãos de composição paritária, com a presença de Juízes togados, representantes dos trabalhadores e dos empregados.

Também são frutos do período corporativista estatal o imposto sindical, hoje contribuição sindical, a organização das entidades sindicais por categorias econômicas ou profissionais e a unicidade sindical.

Esse modelo vigorou até os anos 1980 do século XX.

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A partir daí, os ventos democráticos que sopraram no Brasil tiveram como consequência o surgimento das centrais sindicais, entidades não integradas à estrutura sindical, que exerciam a função de coordenação central da representação dos trabalhadores brasileiros. Elas surgem sem limitações territoriais, sem serem financiadas por verbas públicas e livres das limitações previstas na legislação. As centrais surgiram como decorrência de um movimento espontâneo e contestatório do sistema de corporativismo estatal, sendo contrárias à forma de financiamento das entidades sindicais então vigentes.

Em 1988, é editada a Constituição Federal ainda em vigor.

O sistema sindical criado pela Carta de 1988 acabou apenas reforçando as características do corporativismo de Estado, a despeito de ter sido concebido com a específica finalidade de garantir maior liberdade sindical no país. Esse momento de autonomia sindical caracteriza-se pela garantia da liberdade de associação, sem interferências ou intervenções do Estado na organização das entidades sindicais, na assunção dos sindicatos ao posto de defensor dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas, e na obrigatoriedade de participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho.

Todavia, o sistema criado em 1988 manteve a estrutura hierárquica entre as entidades sindicais, a limitação territorial dos sindicatos, com a adoção do sistema da unicidade sindical e a consequente necessidade de registro sindical no Ministério do Trabalho e Emprego para controle desse sistema, e a contribuição sindical obrigatória.

Na atualidade, mesmo com a permanência do marco jurídico fixado pela Carta Constitucional de 1988, vivemos o que a doutrina vem chamando de neocorporativismo. Nessa nova forma de pensar o atuar sindical, ficam evidenciadas as seguintes características: o fenômeno econômico torna-se o eixo central da atuação sindical4; a atuação sindical fica limitada a questões pontuais, setoriais, sem a participação direta das entidades sindicais nas políticas de estrutura econômica do país; a figura do sindicato integra o panorama de agentes sociais como sujeito de caráter compositivo, e não reivindicativo, havendo forte delimitação do comportamento, e, portanto, da liberdade sindical pelas estruturas de Estado; os conflitos de classe

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são retirados do alcance das estruturas do Estado (extrajudicialização das demandas trabalhistas).

Neste panorama, passa a ser imposto o consenso social. As estruturas de poder, e aquelas outras agregadas a ele, como os sindicatos, passam a legitimar decisões tomadas unilateralmente pelos donos do...

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