Ministério público é cláusula pétrea? Análise na perspectiva da teoria das garantias institucionais

AutorBruno Gomes Borges da Fonseca
CargoProcurador do Trabalho. Ex-Procurador do Estado do Espírito Santo
Páginas125-144

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Introdução

Comumente, no Direito brasileiro, assevera-se que o Ministério Público integra o rol das cláusulas pétreas e, a rigor, dois argumentos são apre-sentados1:

O art. 127 da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988 (CF/1988) definiu o Parquet como instituição permanente. Este adjetivo representaria impossibilidade de o poder constituinte derivado aboli-lo ou descaracterizá-lo; ii o Ministério Público é instituição defensora dos direitos fundamentais. Sua extinção ou desnaturação importaria enfraquecimento da tutela daqueles direitos e, via reflexa, geraria afronta a cláusula de salvaguarda consubstanciada no inciso IV do § 4e do art. 60 da CF/1988.

Os fundamentos (rectius, conclusões) são impactantes, contudo, inconvincentes. Tratou a questão pelo fim e olvidou-se da causa. A ótica de abordagem, portanto, parece equivocada pela ausência de roupagem teórica e isto poderá gerar fragilidade na argumentação.

A CF/1988 promoveu o nascimento de um novo Ministério Público, como instituição essencial à função jurisdicional, defensora do regime democrático, da ordem jurídica e promotora de direitos sociais e individuais indisponíveis (arts. 127 a 130). A sua relevância no Estado Democrático de Direito, espe-cialmente em um país como o Brasil, de inobservância recorrente dos direitos fundamentais, é inegável. Para tanto, aparelhou-se a Instituição de instrumentos como ação civil pública, inquérito civil e termo de ajustamento de conduta.

Essa atuação do Parquet, especialmente na proteção de direitos fundamentais, encontra resistência dos infratores contumazes, do discurso conformador e sempre justificado, da exploração do homem-sujeito pelo homem-objeto. Portanto, diante da flagrante instabilidade constitucional, a pesquisa é plenamente justificável, a fim de analisar se o Direito Constitucional brasileiro erigiu o Ministério Público à condição de cláusula pétrea.

Objetivou-se: (i) analisar as garantias institucionais, tanto em sua concepção original como hodierna; (ii) analisar o enquadramento (ou não) do Ministério Público, tal como previsto na CF/1988, dentro desse quadro

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institucional; (iii) contribuir para o debate acerca da condição (ou não) do Parquetcomo cláusula pétrea.

Como marco teórico, analisou-se a concepção de Carl Schmitt sobre garantia institucional em cotejo com o Direito Constitucional brasileiro. Para a confecção deste artigo, adotou-se método dialético e técnica de pesquisa documental indireta na modalidade pesquisa bibliográfica.

1. Garantias institucionais

Neste capítulo, expor-se-á a Teoria das Garantias Institucionais com ênfase da sua origem na Alemanha desenhada por Carl Schmitt. Após, perpassar-se-á pela sua concepção hodierna e natureza jurídica. Trata-se de capítulo imprescindível e preparatório que possibilitará confrontar a condição (ou não) de cláusula pétrea do Ministério Público.

1.1. Origem

A ideia de garantias institucionais nasceu na Alemanha no início do século XX, quando da vigência da Constituição de Weimar de 1919. Decorreu da relação entre as figuras do instituto jurídico (posteriormente, instituição jurídica) e das garantias constitucionais, com formação de novo conceito: garantias institucionais2.

Friedrich Giese, em 1919, na obra Die Verfassung des Deutschen Reichs vom 11 august 1919, foi quem, primeiramente, referiu-se a institutos ou instituições jurídico-constitucionais. Para ele casamento, propriedade privada e direito sucessório, pelas suas referências constitucionais, tinham esta natureza — e não somente civil. Porém, deixou de formular conceito de garantia institucional3.

Martin Wollf, em 1923, na obra intitulada Reichsverfassung um Eigentum, ao analisar o preceito da Constituição de Weimar que assegurava a propriedade, idealizou a garantia do instituto. Aproveitou lição de Giese e distinguiu o instituto da propriedade do direito respectivo de cada titular. Segundo Wolf, o tratamento de um instituto no campo do direito privado visava apenas regular relações individuais concretas, ao contrário da previsão constitucional que transmudava sua natureza e pretendia protegê--lo dos excessos do legislador4.

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Ludwig Waldecker, em 1924, foi o primeiro a aplicar a concepção de garantia de instituto ao direito público. Segundo Waldecker, o preceito constitucional que prescrevia a inviolabilidade dos direitos adquiridos pelos servidores públicos não tinha desiderato de atribuir direitos individuais, por se referir a todos, a instituição. Fez, portanto, a transição de garantia do instituto para garantia da instituição, embora sem referência expressa5. Entretanto, Carl Schmitt foi quem, em 1928, efetivamente, teorizou acerca das garantias institucionais, através da obra Teoria da Constituição (Verfassungslehre)6.

A Constituição de Weimar foi fundamental para o surgimento da Teoria das Garantias Institucionais por colacionar catálogo de direitos fundamentais e descrever certas instituições, malgrado a ausência de ineditismo desta previsão, pois a Constituição da Prússia de 1850 e da República Soviética Russa de 1918, também, fizeram referências a instituições7.

Igualmente, outros fatores contribuíram para teorização das garantias institucionais: (i) diluição da ambiência liberal, com estudos de Savigny, Stahl e Puchta; (ii) adesão às teorias institucionalistas de Maurice Hauriou e Santi Romano8.

1.2. Doutrina Schmittiana das garantias institucionais

Carl Schmitt traçava diferença entre Constituição e leis constitucionais.

A Constituição, de viés absoluto, significa a maneira de ser resultante da unidade política existente do estado. Representa instância decisória competente, sem designar, tão somente, um sistema de preceitos jurídicos9.

As leis constitucionais, por sua vez, representam conceito formal e relativo de Constituição. É indiferente que mencionadas leis regulem a organização da vontade estatal ou tenham qualquer outro conteúdo. São atos normativos, formalmente constitucionais, mas sem caráter fundamentador10.

Consequentemente, Schmitt sustentava restrições ao poder de reforma constitucional. A Constituição, por conter decisões políticas fundamentais,

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é assunto próprio do poder constituinte do povo, ausente da competência das instâncias autorizadas para reformar e revisar as leis constitucionais. Caso contrário, tais reformas dariam lugar à substituição da Lei Maior e não há uma revisão constitucional11. Com essa posição, ainda sem lapidar, reconheceu a presença de núcleos essenciais na Constituição12.

Schmitt, ademais, patenteou a existência de direitos absolutos e relativos. Os primeiros eram autênticos direitos fundamentais; seu conteúdo não resultava da lei. Os segundos são garantidos com apego à lei. Considerava direitos fundamentais em sentido próprio os direitos individuais do homem frente ao estado, direitos à liberdade da pessoa, ilimitados para o ser humano e limitados quanto à ingerência estatal13.

Inicialmente, Schmitt enxergava com ressalvas a concepção das garantias institucionais como direitos fundamentais, pois a estrutura lógica e jurídica de ambos era diversa. As garantias institucionais eram, por natureza, limitadas; existiam apenas dentro do Estado (e não antes) e a serviço de certas tarefas. Os direitos fundamentais partem do indivíduo e representam esfera ilimitada da liberdade14.

Caso, entrementes, fosse adotada nova concepção, diversa da conformação individual do Estado Liberal, seria possível cogitar-se em garantias com statusde direitos fundamentais. Materializou seu pensamento com o direito de existência do estado-membro dentro da Federação15.

Schmitt citava como exemplos de garantias institucionais: (i) administração municipal autônoma; (ii) proibição de tribunais de exceção; (iii) matrimônio; (iv) descanso dominical; (v) respeito à propriedade privada; (vi) burocracia profissional; (vii) liberdade da ciência e da educação; (viii) instrução religiosa16.

Observava Schmitt garantias institucionais com direitos subjetivos e sem eles. Na propriedade privada, por exemplo, tutela-se a instituição — propriedade — bem como direito do detentor do domínio. Igualmente com a burocracia profissional: protege-se a continuidade do serviço prestado à comunidade, ao passo que se patenteia direitos aos servidores. Pelo revés, ao forjar-se a Família, inexistem direitos aos membros, mas somente à Instituição; o mesmo ocorre com os Municípios, que não recebem direitos

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subjetivos17. Portanto, por intermédio da Constituição, era possível proteger certas instituições. A finalidade era impedir supressão pela legislação ordinária18.

Posteriormente, em texto datado de 1931 (Freiheitsrechte und Institutio-nelle Garantien der Reichverfassung), Schmitt aprofundou-se no estudo das garantias institucionais. Diferenciou estas, direcionadas às instituições de direito público, das garantias de instituto, voltadas para as de direito privado19.

Distinguiu, outrossim, garantias constitucionais de garantias institucionais. Todas garantias institucionais são, também, garantias constitucionais, mas o inverso é inverídico20. As garantias constitucionais eram gênero, das quais eram espécies as garantias institucionais e do instituto21.

Schmitt formulou conceito de garantias institucionais em contraposição à noção liberal de direito subjetivo. Aquelas tutelam o indivíduo desde que pertença a uma instituição22...

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