A polêmica adoção das súmulas vinculantes no Direito brasileiro

AutorDario Fava Corsatto
CargoMestre em Direito pelo UniCeub, atua como Auditor Federal de Controle Externo no Tribunal de Contas da União
Páginas99-148

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A polêmica adoção das súmulas vinculantes no direito brasileiro 1Dario Fava Corsatto2Resumo

O objetivo do trabalho é discutir a polêmica adoção do instituto das súmulas vinculantes no Direito brasileiro. Inicialmente, são tecidas algumas considerações preliminares, discutindo-se, especialmente, o que representa a adoção desse instituto no Brasil e sua evolução em nosso sistema. O trabalho trata, então, de debater as possíveis vantagens e desvantagens da adoção das súmulas vinculantes. Entre as principais vantagens apontadas pela doutrina, discute-se a possibilidade de conferir um tratamento isonômico aos jurisdicionados, a possibilidade de se atribuir maior previsibilidade aos julgados e a possível agilização e desafogamento da atividade judicante. Entre as desvantagens ou problemas que podem ser gerados pelas súmulas vinculantes, analisa-se o esmaecimento do já tênue limite entre a função jurisdicional e a função legiferante, o empobrecimento da argumentação jurídica, a ofensa à liberdade de convicção dos magistrados, o exarcebamento do poder conferido ao Supremo Tribunal Federal, problemas com a exegese da nova súmula e a possível ofensa ao princípio do duplo grau de jurisdição. Concluímos o trabalho constatando que as vantagens advindas com a adoção das súmulas vinculantes superam com ampla margem as deiciências provocadas pelo instituto.

Palavras-chave: Direito constitucional. Súmulas vinculantes. Vantagens. Desvantagens.

Introdução

O Poder Judiciário sofreu importantes alterações com a edição da Emenda Constitucional 45, de 08.12.2004 (EC 45/04), conhecida como Reforma do Poder

1Este artigo está cadastrado no Digital Object Identiier System sob o número doi: 10.5102/ prismas.2010.07.1.05 Disponível em: .

2Mestre em Direito pelo UniCeub, atua como Auditor Federal de Controle Externo no

Tribunal de Contas da União.

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Judiciário. Foi criado o Conselho Nacional de Justiça para iscalizar o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Procurou-se diicultar a promoção do juiz que, injustiicadamente, retenha autos em seu poder, além de se ter determinado que a distribuição de processos seja imediata. Vários mecanismos foram criados para incentivar o aperfeiçoamento da Magistratura. Foi decidido o im das férias forenses nos Tribunais de segundo grau, de modo a tornar a atividade jurisdicional ininterrupta. Criou-se a possibilidade de se instituir a justiça itinerante, a im de facilitar o acesso ao Poder Judiciário.

Contudo, uma das maiores inovações trazidas pela EC 45/2004 diz respeito às súmulas vinculantes. Inspirada nos países que adotam o commom law, especialmente os Estados Unidos, no qual as decisões proferidas pela Suprema Corte obrigam os demais órgãos do Poder Judiciário, a sistemática de súmulas vinculantes apoia-se na teoria dos precedentes ou das decisões sedimentadas, derivadas do brocardo “mantenha-se a decisão e não se perturbe o que foi decidido” (stare decisis et quieta non movere).

A EC 45/2004 incluiu na Constituição Federal a determinação de que o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de 2/3 dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oicial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei (art. 103-A, caput).

A grande questão que se coloca é: ainal, a introdução de um instituto tão estranho à nossa realidade jurídica trouxe benefícios para o exercício da jurisdição? E, em caso airmativo, a referida inovação teria preservado os princípios constitucionais emanados do constituinte originário, especialmente no que se refere ao princípio da separação de poderes? Nosso objetivo é esmiuçar essas questões, analisando as principais vantagens e vantagens declinadas pela doutrina referentes à adoção do instituto no Brasil, bem como enfrentando a questão referente à pretensa inconstitucionalidade da emenda constitucional que inovou a ordem jurídica nacional.

Muitas foram as vozes contrárias que vieram à tona com o surgimento, entre nós, dessa espécie de súmulas, críticas essas que ainda subsistem com grande força.

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Há aqueles que defendem que as súmulas vinculantes engessarão o Poder Judiciário, impedindo que os juízes das instâncias inferiores e as partes que nelas atuam oxigenem o pensamento jurídico ao impossibilitar que novas teses jurídicas se desenvolvam, atuando como uma espécie de cerceamento da capacidade criadora de todos quantos atuam nessas instâncias. A essa crítica, soma-se a sensação de que se atribuiu, ao inal de contas, um poder exagerado ao Supremo Tribunal Federal, o que pode resultar em um indesejável desequilíbrio de forças, até mesmo porque não haveria como controlar um eventual abuso de poder por parte desse órgão, o qual acabaria atuando como verdadeiro legislador. Há, ainda, a visão de que as súmulas vinculantes seriam uma resposta burocrática e pobre ao fenômeno que icou conhecido como crise da justiça, que vem a ser a incapacidade de o Poder Judiciário responder dentro de prazo razoável às demandas por justiça da sociedade.

A essas críticas somam-se outras. Muitos entendem que haveria um esmaecimento ainda mais acentuado no já tênue limite entre a função jurisdicional e a função legiferante, que, em função do princípio da separação dos Poderes, deveria ser exercido por órgãos distintos. Outros, por sua vez, se mostram irresignados com a ofensa ao princípio do duplo grau de jurisdição que o novo regime acarretaria ao sistema jurídico.

Os defensores das súmulas vinculantes, entre os quais nos iliamos, rebatem cada uma dessas ideias. Entendemos que tal instrumento, se aplicado dentro da previsão constitucional, não compromete o desenvolvimento da doutrina jurídica e nem municia o Supremo Tribunal Federal com um poder desmedido, até porque, dentro do engenhoso sistema de freios e contrapesos que foi sabiamente preservado na arquitetura das súmulas vinculantes, cabe a outro Poder, o Legislativo, exercer o necessário controle sobre elas, bastando para isso a simples edição de uma lei em sentido contrário.

Não queremos com isso dizer que as súmulas vinculantes sejam à prova de abusos – não o são, assim como não é isenta de falha qualquer invenção humana; demonstraremos, contudo, que, da mesma forma que outros bons institutos, as súmulas vinculantes contêm eicaz antídoto contra seu mau uso.

A adoção entre nós da súmula vinculante não apenas preservou o delicado sistema de freios e contrapesos entre os poderes como também trouxe grandes

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vantagens à administração da justiça. Por um lado, o instituto tem a capacidade de desafogar o Poder Judiciário de milhares de processos que, no inal das contas, teriam o mesmo im, ainda que siga caminhos diferentes, dependendo da opção processual escolhida, permitindo que se torne realidade a prática de uma justiça mais célere. Por outro lado, o novo instrumento tem o condão de assegurar maior isonomia do jurisdicionado frente às decisões judiciais, tendo em vista a uniformização da jurisprudência que pode ser percebida como consequência da nova concepção.

Em síntese, procuraremos demonstrar, no presente trabalho, que a adoção das súmulas vinculantes tem o potencial de trazer grandes benefícios para o sistema jurídico brasileiro, superando em larga escala os problemas que possam advir dessa inovação.

2 Considerações preliminares

2.1 Súmulas tradicionais ou persuasivas e súmulas vinculantes

Entende-se por súmula (do latim summula, sumário, resumo) um enunciado simples e direto – normalmente elaborado em uma única frase – que traduz a interpretação dominante adotada por um colegiado qualquer sobre determinado tema em certa época. A súmula tem a função, portanto, de traduzir, da forma mais didática possível, o entendimento que predomina em um tribunal, poupando a comunidade jurídica de empreender pesquisas jurisprudenciais toda vez que se deparar com certo tema. Tem também a função de poupar os próprios membros daquele tribunal de citar todos os precedentes que escoram suas decisões, bastando que citem a súmula para se fazerem bem entendidos. As súmulas, assim, nasceram com o objetivo de tornar mais transparente o pensamento dos tribunais, conferindo, por via de consequência, maior segurança jurídica aos jurisdicionados. Pertinente citar conceito de direito sumular adotado em acórdão do STJ (AgRg no Ag 8703/ CE, DJ 02/09/1991):

O direito sumular traduz o resumo da jurisprudência sedimentada em incontáveis e uniformes decisões das Cortes superiores do País, que visam à “rapidiicação” de causas no Judiciário.

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Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci enunciam uma interessante lição sobre a evolução de entendimentos consolidados em direção à sua sumulação3:

Em nosso sistema codicista, a tese jurídica que fundamenta uma decisão judicial produz efeito diante do caso sob análise, mas não deixa de servir de exemplo, ‘precedente’ para decisões subseqüentes. Se esta tese jurídica perilhada vê-se reiterada de modo uniforme e constante (permanência lógica e temporal) em casos semelhantes, identiicamos o que intitulamos ‘jurisprudência’. Quando esta tese conquista terreno...

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