O Estado como metadispositivo

AutorJean-François Yves Deluchey
CargoDoutor em Ciência Política pela Universidade da Sorbonne Nouvelle, Paris 3 (França)
Páginas115-146

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O Estado como metadispositivo

State as a metadispositive

Jean-François Yves Deluchey*
Universidade Federal do Pará, Belém-PA, Brasil

1. Introdução

Ao iniciar esta reflexão, vale frisar o quanto estudar universais como o “Direito” e o “Estado” envolve um exercício intelectual complexo que, no intuito de chegar a algum efeito válido de conhecimento, obriga o pesquisador a passar por vários estágios de ruptura epistemológica. Como disse o Bourdieu no texto “Espíritos de Estado”.

Tentar pensar o Estado é expor-se a assumir um pensamento de Estado, a aplicar ao Estado categorias de pensamento produzidas e garantidas pelo Estado e, portanto, a não compreender a verdade mais fundamental do Estado. [...] Quando se trata do Estado, nunca duvidamos demais1

No Estado, através da escola e outros dispositivos que o Althusser chegou a designar como Aparelhos Ideológicos de Estado2, se constroem nosso raciocínio e nossa maneira de enxergar o mundo. Por outro lado, o Estado não é apenas o lugar de expressão de um governo de cima para baixo. Este adentra cada minúcia de nossas experiências diferenciadas de vida, e serve

* Doutor em Ciência Política pela Universidade da Sorbonne Nouvelle – Paris 3 (França). Professor associado da Universidade Federal do Pará – UFPA (Belém, Pará, Brasil). Email: jeanfrancois@pq.cnpq.br.
1 BOURDIEU, 2008. pp 91-92, grifo nosso

2 ALTHUSSER, 1976

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de quadro normativo à definição discursiva e identitária de quem somos ou, melhor, onde nos situamos em relação às categorias de diferenciação construídas no espaço social. Lembremos dos ensinos de Michel Foucault:

vemos que o governador, as pessoas que governam, a prática do governo, por um lado, são práticas múltiplas, já que muita gente governa: o pai de família, o superior de um convento, o pedagogo, o professor em relação à criança ou ao discípulo; há portanto muitos governos em relação aos quais o do príncipe que governa seu Estado não é mais que uma das modalidades. Por outro lado, todos esses governos são interiores à própria sociedade ou ao Estado. É no interior do Estado que o pai da família vai governar sua família, que o superior do convento vai governar seu convento, etc3.

Na tentativa de pensar o Estado, acaba sendo difícil se desprender de certo conformismo lógico referente às nossas estruturas fundamentais de pensamento. Para Bourdieu, este conformismo lógico se impõe nas nossas construções intelectuais, tanto quanto um conformismo moral, que “confere todas as aparências do natural a um arbitrário cultural4. Estejamos prevenidos: no que se refere ao Estado, temos de ser ainda mais vigilantes na nossa caminhada epistemológica, para não ficarmos reféns da violência simbólica exercida sobre nosso pensamento pelo conformismo lógico e pelo conformismo moral construídos através do Estado.

Como dizia Gaston Bachelard, nada é dado, tudo é construído5. Importa, nessas condições, desconstruir o objeto de pesquisa “Estado” para finalmente construí-lo e tratá-lo para fins epistemológicos. Por isto, reconstruir objetos como “Direito” ou “Estado” não é tarefa fácil. Sem nenhuma pretensão de exaustividade, este trabalho tem como objetivo facilitar a

3 FOUCAULT, 2009. p. 124, grifo nosso

4 BOURDIEU, 2011. p. 95 O “conformismo lógico” e o “conformismo moral” são conceitos usados por Émile Durkheim no seu estudo As formas elementares da vida religiosa. Para Durkheim, “a sociedade não pode abandonar as categorias ao livre arbítrio dos particulares sem se abandonar ela própria. Para poder viver, ela não necessita apenas de um suficiente conformismo moral: há um mínimo de conformismo lógico sem o qual ela também não pode passar”. DURKHEIM (E.), As formas elementares da vida religiosa. O sistema totêmico na Australia, São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. XXIV.

5 Bachelard tem nos avisado: “Antes de qualquer coisa, temos que saber colocar os problemas. E, por mais que se fale, na vida científica, os problemas não se colocam por si mesmos. É precisamente este sentido do problema que dá a marca do verdadeiro espírito científico. Para um espírito científico, todo conhecimento é uma resposta a uma pergunta. Caso não tenha tido pergunta, não pode ter-se conhecimento científico. Nada vem por si. Nada é dado. Tudo é construído” BACHELARD, 2011. p. 16, grifo do autor, tradução nossa).

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caminhada de qualquer estudante ou pesquisador que queira tratar cientificamente de tais universais. O estudo aqui proposto tenta realizar uma síntese, a partir dos estudos de Pierre Bourdieu e Michel Foucault – em diálogo com Thomas Hobbes e Max Weber – de como poderíamos definir epistemologicamente o “Estado”, no intuito de poder estudá-lo com as melhores ferramentas possíveis. Para garantir algum sucesso para tal empreitada percebi a necessidade de passar por cinco etapas: primeiro, é preciso desprender-se do senso comum (doxa) que nos leva a usar da palavra “Estado” como se este fosse um ente, uma pessoa. Segundo, a partir de uma análise etimológica do verbete “estado”, me perguntarei se, na ânsia de dar uma definição fechada ao conceito, não estaríamos necessariamente levados a procurar dar uma “essência” ao Estado, impedindo assim abordar este objeto com o recuo necessário à análise crítica-científica. Num terceiro momento, analisarei o modelo de emergência do Estado construído por Pierre Bourdieu, que propõe uma abordagem mais agnóstica de seu estudo a partir da crítica feita à definição (clássica) de Max Weber. Em seguida, analisaremos o Estado enquanto ficção jurídica, e mostraremos as principais armadilhas dóxicas das quais os estudiosos do Estado têm de se precaver em relação ao ordenamento jurídico do Estado na ordem liberal-capitalista. Finalmente, tentarei dar ao “Estado” uma definição epistemológica que possa nos ajudar a evitar as principais armadilhas que este conceito impõe aos seus estudiosos. O objetivo deste trabalho, finalmente, é de enfrentar duas perguntas de difícil resolução: o que é esse “X” que chamamos de Estado, e qual definição conceitual nos permitiria desenvolver um pensamento mais crítico, anti-dóxico, sobre o Estado?

2. A persona do Estado

A definição do “Estado” traz problemas claros ao cientista social. Na sua definição clássica e sempre retomada, o sociólogo alemão Max Weber define o Estado como

aquela comunidade humana que, dentro de determinado território - este, o “território”, faz parte da qualidade característica -, reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física legítima, pois o específico da atualidade é que a todas as demais associações ou pessoas individuais somente se atribui o direito de exercer coação física na medida em que o Estado o permita. Este é

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considerado a única fonte do “direito” de exercer coação6.

Vale de início observar que Max Weber retoma aqui parte da definição hobbesiana do Leviathan (Common-Wealth ou Civitas), o qual seria a unidade depositária da convenção passada entre si pelos membros de uma sociedade, a “pessoa” que reúne a multidão para garantir o bem comum de todos, através da paz interna e da defesa externa:

É mais do que consentimento ou concórdia, é uma real Unidade de todos, em uma mesma Pessoa, operada por Convenção de cada homem com cada homem, de tal maneira que cada um deveria dizer para cada um, Eu Auto-rizo e abro mão de meu Direito a me Governar, para este Homem, ou para esta Assembléia de homens, na condição de que você abra mão de seu Direito para ele, e Autorize todas suas ações da mesma forma. Isto feito, a Multidão assim unida em uma Pessoa, é chamada do ESTADO [ou REPÚBLICA, COMMON-WEALTH], em latim CIVITAS. Essa é a geração do grande LEVIATHAN, ou melhor (para falar com maior reverencia) deste Deus Mortal, a quem devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. [...] E nele consiste a Essência do Estado [Common-wealth]; o mesmo sendo (para defini-lo) Uma Pessoa, nos atos da qual a grande Multidão, por Convenções mútuas um com o outro, fez de cada um deles o Autor, com o objetivo de poder usar a força e recursos de todos, de forma que ele achar adequada, para garantir sua Paz e sua Defesa Comum7.

Encontramos aqui a referência em uma pessoa una, reunindo a multidão dos cidadãos (comunidade humana), representando-a ou, até, transcendendo-a para, por sua vez, se tornar pessoa. Na ordem da defesa externa, a ideia do Estado como pessoa coletiva vai ao encontro de uma definição puramente jurídica do Estado como “pessoa jurídica de direito internacional”. Deste ponto de vista, podemos entender a proposta de Michel Foucault expressa no Nascimento da Biopolítica: “O Estado só existe como os Estados, no plural8. Por outro lado, esta verdade jurídica é circunscrita ao único campo do direito internacional. Por este motivo, assimilar o Estado a uma “pessoa” ofusca o que é e representa o Estado na

6 WEBER, 2004. pp. 525-526

7 HOBBES, 1929. pp. 131-132. Tradução nossa. Grifo do autor

8 FOUCAULT, 2008. p.7

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ordem jurídica interna (“paz interna”), no território de seu ressort político, na sua relação com a comunidade política correspondente.

Esta primeira armadilha epistemológica se apoia em uma consideração de senso comum, uma doxa9que nos incita a usar a palavra “Estado” como se esta designasse uma pessoa, um sujeito. Esta definição dóxica do Estado tende a confundir o Estado com a fundação de uma nação ou de qualquer grupo instituído de indivíduos. Por meio desta definição, tratase indistintamente do vetor (Estado) e do receptor (comunidade política) da obra de legitimação. Por isto, tendemos a...

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