O mercosul e a 'construção' do tribunal supranacional trabalhista: em busca da realização do direito humano ao trabalho digno

AutorJuliane Caravieri Martins Gamba
CargoDoutoranda em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (USP)
Páginas290-318

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"Para além de suas diferentes atitudes — otimistas ou pessimistas, realistas ou idealistas — os juristas precisam assumir, portanto, as responsabilidades ligadas à sua profissão. E, se é verdade que a curto prazo não podemos nos iludir, é também verdade que a história nos ensina que os direitos não caem do céu, e um sistema de garantias efetivas não nasce numa prancheta, não se constrói em poucos anos, nem tampouco em algumas décadas. Assim foi com o Estado de direito e com nossas democracias ainda frágeis, que só se afirmam à custa de longas batalhas no campo das ideias e de lutas sangrentas. Seria irracional pensar que o mesmo não acontecerá com o direito internacional e não nos empenharmos na parte que nos cabe."

Luigi Ferrajoli1

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Introdução

Após a Segunda Guerra Mundial, houve a consolidação na ordem internacional de blocos econômicos de integração regional que objetivaram o fortalecimento econômico e político dos Estados-partes no intuito de obter maior competitividade no comércio mundial. Na América Latina, apesar de haver outras propostas de integração regional, destacou-se o Mercado Comum do Sul (Mercosul) criado em 1991 através da assinatura do Tratado de Assunção entre o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai.

O Mercosul assumiu mais uma feição de aliança comercial com vistas a dinamizar a economia regional, tendo o desafio de sua conversão em mercado comum com a implantação da livre circulação de bens, serviços, pessoas e capitais, de modo que os principais tratados assinados — que fundamentaram sua criação e a institucionalização — não disciplinaram a tutela do direito humano ao trabalho digno.

O trabalho deve ser entendido como direito humano e obrigação social imposta aos Estados, à comunidade e aos particulares e não na condição de mercadoria ou custo de produção como o capitalismo procurou difundir. Assim, deve-se garantir ao ser humano não apenas o "trabalho", mas o trabalho digno — que respeita a pessoa humana trabalhadora em sua integralidade físico-psíquica como ser único e insubstituível —, sobretudo no âmbito dos processos de integração regional como é o caso do Mercosul.

Nesse contexto, foi aprovado pelo Parlamento do Mercosul (PARLA-SUL), em dezembro de 2010, um projeto de norma para a criação da Corte

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de Justiça do Mercosul como órgão jurisdicional, judicial e independente para garantir a aplicação e a interpretação uniforme das normas, substituindo o vigente Protocolo de Olivos na solução das controvérsias no bloco.

Entretanto, entende-se que esse projeto de norma criará uma Corte de Justiça no Mercosul com jurisdição supranacional "incompleta" porque não resolverá todas as espécies de litígios que poderão se constituir no bloco, principalmente aquelas que envolvam as relações de trabalho. Assim, propõe-se a necessária "construção", no âmbito do processo de integração mercosulista, de um Tribunal Supranacional Trabalhista capaz de buscar a realização fática do direito humano ao trabalho digno.

O presente estudo dividiu-se em três partes. Primeiramente, foram realizadas algumas reflexões sobre o direito humano ao trabalho digno. A seguir, debruçou-se sobre a análise do "trabalho digno" — enquanto direito inerente à condição humana — a ser garantido no Mercosul. Por fim, adentrou-se no estudo da proposta de "construção" do Tribunal Supranacional Trabalhista no Mercosul como instrumento para a realização do direito humano ao trabalho digno no intuito de atingir uma integração regional mais equânime e solidária para os povos do Cone Sul.

Portanto, o presente artigo buscou produzir conhecimento em tempo de crise das ciências e de busca de novos paradigmas, tentando, na medida do possível, buscar "um caminho real para aceder à verdade"2, não obje-tivando exaurir os questionamentos em relação ao tema ora proposto, mas contribuir para o enriquecimento das discussões sobre a proposta da criação de um Tribunal Supranacional no Mercosul.

1. O direito humano ao trabalho digno: algumas reflexões

O ser humano, enquanto ser social e político, sempre procurou estabelecer regras de convivência em comunidade3, objetivando a harmonia na coexistência com seus semelhantes desde tempos remotos da civilização. O próprio ser humano "sentiu" a necessidade da criação do direito, convertendo as necessidades sociais em normas coercitivas, superando a época

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em que a força física era a única forma de impor a sua vontade. Seja no âmbito de diferentes comunidades, seja em épocas históricas diferenciadas, todas as atividades dos seres humanos são reguladas pelo direito, consoante as assertivas de Vicente Ráo4:

É certo que o direito se apodera do homem desde antes de seu nascimento e o mantém sob sua proteção até depois de sua morte. Mas, certo também é que, sempre e a todo instante, o considera como parte de uma comunhão, que é a sociedade, fora da qual o homem, civilmente, não poderia viver. Por isso, é que sociedade e direito forçosamente se pressupõem, não podendo existir aquela sem este, nem este sem aquela. Ubi societas ibi jus. Se a coexistência social resulta da natureza humana, também da natureza do homem, que Deus fez à sua semelhança, o direito decorre.

No decorrer da história e da civilização humanas, evoluiu-se a concepção da dignidade da pessoa humana como indissociável do direito, em especial no âmbito dos direitos humanos5, pois ela não esteve sempre presente nas leis escritas para todos os povos e os Estados, mas foi construída e reconstruída permanentemente no convívio em comunidade.

Após o término da Segunda Guerra Mundial — na qual se verificou a prática de atrocidades contra o ser humano oriunda dos regimes totalitários, em especial nazista e fascista—, a dignidade da pessoa humana refletiu--se na "reconstrução" dos direitos humanos no mundo contemporâneo, sendo erigida ao statusde princípio6 de maior hierarquia axiológica, estando presente nas Constituições dos Estados Democráticos, nas declarações, nos pactos e nos tratados internacionais de direitos humanos.

Maria Garcia7 afirma que "a dignidade da pessoa humana corresponde à compreensão do ser humano na sua integridade física e psíquica, como

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autodeterminação consciente, garantida moral e juridicamente". Flávia Piovesan8 dispõe acerca do significado e da importância do princípio da dignidade da pessoa humana na vigente ordem jurídica:

Sustenta-se que é no princípio da dignidade humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, para a hermenêutica constitucional contemporânea. Consagra-se, assim, a dignidade humana como verdadeiro superprincípio a orientar tanto o direito internacional como o direito interno. (...)

Assim, seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno (à luz do direito constitucional ocidental), a dignidade da pessoa humana é princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade. A dignidade humana simboliza, desse modo, verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe de especial racionalidade, unidade e sentido.

É nessa direção jusfilosófica que deve caminhar a compreensão da dignidade da pessoa humana, incluindo o trabalhador9, como princípio a orientar a compreensão e aplicação das normas jurídicas, ou seja, como valor-fonte da ordem constitucional dos Estados e nos processos de integração regional, refletindo-se na necessária concretização do direito humano ao trabalho digno nas relações sociais que permeiam o mundo do trabalho contemporâneo.

Nos primórdios da civilização, o trabalho era a atividade ligada à pesca, à caça, à coleta de frutos e à plantação de alimentos destinados ao sustento do homem e acompanhou a evolução histórica do próprio ser humano, sendo a atividade que garantiria a subsistência e a vida em comunidade. À luz da Antropologia Jurídica, José Manuel de Sacadura Rocha10 discorre sobre a relação homem-trabalho:

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A construção do homem pode ser resumida em Trabalho. O trabalho é para o homem seu "inferno" e seu "paraíso". Mesmo nas teorias "criacio-nistas" — a criação divina —, o trabalho aparece como fundamento de sua ontologia—a construção de seu ser. Pelo trabalho os hominídeos, ancestrais dos humanos, se transformaram ao longo de milhões de anos e puderam produzir a humanidade tal como a conhecemos em nossos dias — teoria evolucionista. Desde os estudos de Charles Darwin, no século XIX, até hoje, a antropologia e as demais ciências parecem confirmar essa evolução a partir de circunstâncias de necessidade, de sobrevivência material e adaptação à natureza.

A partir do desenvolvimento do modo de produção capitalista, houve a divisão social e técnica do trabalho que transformou este ato, inicialmente tão natural, numa engrenagem do processo de produção. A Revolução Industrial do século XVIII impôs novas formas de produção com o uso de forças motrizes, tais como a máquina a vapor e o tear mecânico, que impulsionaram o crescimento da produção fabril. Desse modo, ao ser humano não seria mais suficiente trabalhar para se manter vivo, uma vez que o trabalho passou a representar salário11 e o trabalhador a ser operário assalariado, ambos integrantes do sistema capitalista, assumindo a forma de mercadorias ou de custos de produção.

Analisando a Revolução Industrial, seus impactos na vida em comunidade, na relação trabalho-capital e na necessidade do direito de pacificar os conflitos sociais no mundo do trabalho, Alain Supiot12 tece os seguintes comentários:

Essa explosão [das novas tecnologias da informação e da comunicação] se insere num processo iniciado com a Revolução Industrial. A exploração...

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