Entre mercado e hierarquia: repercussões da desverticaliza-ção na disciplina dos contratos empresariais

AutorOsny da Silva Filho
Páginas121-138

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Introdução

O propósito deste texto é apresentar elementos de uma agenda de pesquisa a respeito da disciplina jurídica das organizações híbridas, figuras que se localizam entre modelos de governança típicos dos mercados e estruturas característicamente hierárquicas, não se assimilando nem aos contratos, nem às sociedades.

Mais do que trazer uma nova expressão ao vocabulário jurídico, essa agenda envolve ao menos três objetivos anteriores e complementares. Primeiro, reconhecer as idéias disponíveis no campo em questão,1 vale dizer, as categorias cujos limites vêm sendo esgarçados pela recorrência das organizações híbridas. Segundo, apontar as razões pelas quais essas figuras têm se tornado cada vez mais comuns, a fim de modular a relevância de seu estudo. Terceiro, mapear as respostas jurídicas já oferecidas, abrindo caminho, a partir de sua crítica, para o eventual desenvolvimento de uma doutrina especificamente conformada pelas particularidades da categoria.

Procurarei articular esses objetivos ao longo de três seções. Na primeira, as noções de contrato e sociedade são apresentadas como modelos arquetípicos, e os caracteres dessa dicotomía são discutidos a partir de suas mutações no curso das últimas décadas.

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Na segunda, sugerem-se algumas razões e conseqüências de seu recente esgarçamento, acarretado pela desverticalização do processo produtivo, i.e., pela contratual ização de relações até então estruturadas em hierarquias. Por fim, na terceira seção, as reações jurídicas e econômicas a esse esgarçamento são contrapostas, a fim de estabelecer as demandas envolvidas na disciplina das organizações híbridas.

1 - Contratos e sociedades: itinerários de uma antiga dicotomía

O objetivo desta seção é colocar em perspectiva os contornos assumidos pela da dicotomía contratos-sociedades, de sua constituição apartada, no curso do século XIX, aos primeiros sinais de sua dissolução, já em meados do século XX. Os arquétipos dessas figuras serão apresentados no item A; em seguida, no item B, serão discutidas as chaves de leitura da voluntas e dos iusfraternitatis. No item C, alguns dos aportes da Análise Econômica do Direito serão contextualizados no âmbito das duas disciplinas, ainda consideradas apartadamente. No item D, os primeiros sinais de seu esgarçamento serão discutidos a partir das noções de contratos relacionais e joint ventures.

A) Premissa: os modelos arquetípicos

Ainda que desde o consortium inter fratres romano as sociedades tenham se mantido na esfera teórica das obrigações consensuais - dos contratos, diríamos hoje -,2 não parece incorreto restringir a idéia de contrato e um campo menos amplo, delimitado pelos chamados "contratos de intercâmbio".3 Trata-se de um arquétipo usual, largamente difundido na doutrina brasileira, conforme o qual a disciplina das trocas (intercâmbios) diz respeito à oposição de interesses: de um lado, o interesse do adquirente em obter um bem ou serviço pelo menor preço possível; de outro, o interesse do alienante em ceder este bem ou serviço mediante uma contraprestação que o satisfaça.

No extremo oposto estariam as "sociedades" e seu respectivo "direito societário", fundados na colaboração e na comunhão de interesses (ou ainda, conforme a conhecida lição de Ascarelli, no caráter plurilateral).4 Ao contrário da maioria dos contratos de intercâmbio (a partir daqui, apenas "contratos"), os contratos de sociedade (a partir daqui, apenas "sociedades") teriam, em geral, caráter duradouro, e envolveriam, ao menos em sua configuração mercantil, investimentos mútuos (seja com trabalho, seja com capital) na obtenção de lucros (um escopo per se inesgotável).

Os modelos traçados acima autorizam uma distinção entre aquilo que está "dentro" e aquilo que está "fora" da sociedade. Em seu interior, reinam as relações de hierarquia, definidas por determinações impassíveis de barganha, e os conflitos são resolvidos pelo poder de mando. Fora delas, no mercado, prevalecem as relações igualitárias, funda-

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das na paridade de forças, e ordinariamente sujeitas à intervenção judiciária ou arbitral.5 Apartam-se, de um lado, a disciplina do mercado, pautada pelas trocas firmadas entre grandes empresas e consumidores; de outro, a disciplina - ou, mais precisamente, o modelo administrativo - das hierarquias, estabelecidas ao longo da cadeia produtiva, uma cadeia centralizada sob uma mesma estrutura societária.

No Brasil, um passo significativo no sentido da distinção traçada acima seria dado pela incorporação do conceito de empresa, originalmente articulado no campo econômico, ao arcabouço teórico do direito comercial.6 Tomada primordialmente por seus perfis subjetivo e funcional,7 a empresa -agente econômico se voltaria, antes de tudo, para a realização do objeto social, seja qual fosse a estrutura organizacional empregada nessa tarefa. Assim conformada, a empresa permanecerá opaca às alterações estruturais que antecedem sua agência, vale dizer, aos processos de des-diferenciação das relações contratuais. Ao mesmo tempo, sua disciplina - aquilo que no Brasil vem sendo chamado de "direito empresarial" - pouco a pouco assimilará conteúdos que antes eram agrupados sob a rubrica do direito comercial.

B) As primeiras chaves de leitura: "voluntas " e "ius fraternitatis "

Indicando noções nem sempre unívocas, mas confrontadas sob um espectro de sentidos razoavelmente uniforme, vontade e cooperação parecem ter sido os conceitos-chave do direito dos contratos e do direito societário ao longo do século XIX.8 Em torno deles seria erigida uma disciplina que, embora devedora da antiga tradição romana - voluntas e affec-tio societatis são, em última análise, chaves de leitura herdadas da antiga iurisprudentia -, buscava novos fundamentos no espectro ideológico assentado pela Revolução Francesa. Ao mesmo tempo em lançaria as bases para sua desconstrução, o desenvolvimento industrial traria novas razões para a manutenção dessa disciplina dicotômica, abrindo caminho para a apropriação jurídica dos modelos econômicos neoclássicos na segunda metade do século XX.

Sede de uma série de contendas históricas - da célebre oposição entre partidários da Willenstheorie e da Erklãrungstheorie ao conhecido embate entre Emilio Betti e Giu-seppe Stolfi -,9 a idéia de vontade marcou a formação de um modelo jurídico contratual que hoje podemos chamar de clássico. Definido no art. 1.101 do Código Napoleão como "une convention par laquelle une ou plusieurs personnes s 'obligent, envers une ou plusieurs autres, à donner, àfaire ou a nepas faire quel-que chose", o contrato surgia, em 1804, como um conceito relativamente novo, veículo de expressão igualitária de uma determinada noção liberdade.10 Os textos romanos sobre

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os quais se debruçavam Domat e Pothier, com efeito, não ofereciam uma definição de contrato: em vez disso, apresentavam uma série de regras a respeito daquilo que hoje chamamos de tipos ou categorias contratuais, agrupando-os como fontes de obligationes.

A novidade, assim, não estava propriamente na associação entre voluntas e obligado (associação que, ademais, já era reconhecida pela jurisprudência romana); tampouco se poderia dizer que a inovação daquilo que hoje chamamos de "voluntarismo jurídico" tenha decorrido de uma redução da idéia de autonomia a um fenômeno de caráter psicológico, espantalho das críticas tardias que, na prática, jamais parece ter sido encampado seriamente.11 Sua inovação reside em algo mais modesto, embora significativo e, uma rápida consulta às disposições gerais do Código Civil brasileiro vigente a respeito do negócio jurídico pode confirmar, duradouro: o desenvolvimento de uma teoria que, de modo sistemático, traçava todas as determinações contratualmente estabelecidas à vontade das partes.12

Não se pense, entretanto, que tenha havido (ou que haja) univocidade teórica a respeito do papel da vontade na formação dos contratos e na definição de suas conseqüências: uma mesma contraposição entre verba e voluntas, para mencionar um caso clássico, era tomada em sentidos completamente diferentes, a depender da orientação teórica de cada autor. Tomando um exemplo já referido, mesmo um objetivista como Betti não descartava o segundo termo em favor do primeiro, como poderíamos imaginar em um primeiro momento, mas insistia em que a voluntas, diferente da "vontade pura", uma vontade que "permaneceu não expressa, no círculo interno da consciência", deveria ser assimilada à "própria declaração, interpretada conforme o seu espírito".13

No campo do direito societário - neste ponto muito menos movimentado, diga-se de passagem, que o do direito dos contratos -, um papel similar foi desempenhado pelas noções Treupflicht (Alemanha), fiduciary principie (Estados \}n\àos),fairness andgood faith (Inglaterra) ou, no caso do Brasil e de alguns países francófilos, affectio societatis (antiga expressão romana retomada em meados do século XIX, a partir da...

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