Menos nacionalismo e mais direitos humanos: o papel do MPT diante do trabalho do estrangeiro em situação irregular

AutorCristiane Maria Sbalqueiro Lopes
CargoProcuradora do Trabalho. Mestre e doutora pela Universidad Pablo de Olavide de Sevilla
Páginas202-219

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Introdução

Saiu estampada na primeira páginada Folha de S. Paulode 23.1.2011: "Países ricos fazem oferta de mão de obra para o Brasil". A reportagem, em tom claramente sensacionalista, chegava a afirmar que "a fila de espera para entrar no país, sobretudo no setor de construção, inclui americanos, espanhóis, italianos, portugueses e ingleses", além dos vizinhos chilenos e argentinos, e que há um interesse "brutal" em vir para cá.

Abstraindo o exagero evidente da notícia, o fato é que ela marca um ponto de virada, causado tanto pela carência de formação de mão de obra qualificada no Brasil quanto pela conjuntura de crise econômica nos países que antes recebiam trabalhadores brasileiros imigrantes (provavelmente não por casualidade, as nacionalidades citadas na manchete de primeira página citam especificamente os países que mais atraíam brasileiros nos últimos anos).

Esse exagero também revela um traço bem brasileiro: um certo ufanismo nacionalista. Duplo perigo. Esconde o colapso na educação e instiga juízos infundados de pretensa superioridade do brasileiro agora também em face aos cidadãos de países de "primeiro mundo"1.

Estarão as instituições brasileiras preparadas para lidarem com um novo boom de imigração para o Brasil? A se julgar pelos atuais procedimentos adotados em face dos estrangeiros encontrados trabalhando em situação irregular no país, como os bolivianos em São Paulo e os mercosulinos em geral, a pergunta dá o que pensar.

Temos uma legislação seletiva para a imigração, que, no que diz com a mão de obra qualificada, é permissiva, apesar de burocrática. No entanto, a aplicação da legislação, principalmente diante dos casos de imigração espontânea (no sentido de não ter sido oportunizada por nenhuma empresa), é dificultada pela presença de alguns preconceitos e ideias distorcidas bem arraigadas na cultura brasileira (superioridade em face dos latino-americanos e temor a que o estrangeiro roube nossos empregos). Se somarmos a isso o maniqueísmo de alguns agentes públicos ("é preciso defender os empregos brasileiros do ataque dos estrangeiros"), teremos os ingredientes necessários para ferir muitos direitos humanos, sem com isso garantir nenhum benefício ao Brasil ou aos cidadãos brasileiros.

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Esse artigo pretende oferecer uma perspectiva teórica para o enfren-tamento dos problemas que a imigração para o Brasil poderá acarretar, bem como, a partir dessa perspectiva, oferecer uma proposta concreta de atuação para o membro do Ministério Público de Trabalho que for chamado a atuar em situações de exploração do trabalho estrangeiro.

1. Nacionalismo É bom para o país?

Há pessoas que relacionam o patriotismo com o nacionalismo e, por isso, concluem que se trata de ideologias valorosas e benéficas. Realmente, patriotismo e nacionalismo possuem aspectos comuns, relacionados com o amor a uma comunidade, mas o patriotismo desconsidera a questão da homogeneidade cultural, enquanto que o nacionalismo a evidencia. Pode parecer que a noção de patriotismo seja mais democrática, mais pluralista. Mas, sem entrar na discussão sobre qual dessas ideologias seria "melhor" (afinal, o patriotismo também pode ser manipulado como quando, por exemplo, existem conflitos internos separatistas dentro de um mesmo país), sustentamos que qualquer coalizão de pessoas com o objetivo de criar as condições que permitam dominar/expulsar outras pessoas tidas por não pertencentes ao grupo é ruim.

O fato é que movimentos que pretendem a afirmação do grupo têm natureza excludente, muito embora possam ser originados como resposta a agressões ilegítimas. O desafio é não estancar o diálogo cultural quando predomina o movimento de autoafirmação pois, em sua base está frequentemente, disfarçado ou não, o sentimento de superioridade. Quando é assim, o sentimento de pertencimento superdimensiona as diferenças para fazer delas o fator de incompatibilidade entre as pessoas. A divisão entre grupos, a desigualação e a hierarquização propiciadas por essas ideologias levam ao embrutecimento cultural e podem, em casos extremos, legitimar comportamentos violentos, cuja expressão máxima é o genocídio.

A esta altura, já está claro nosso posicionamento sobre nacionalismo e direito. No entanto, com as mais nobres intenções, há quem defenda, ainda, o nacionalismo como estratégia de resistência às imposições de um cosmopolitismo que esconde os interesses das corporações transnacio-nais, apátridas por interesse próprio sem instituições nem práticas. Rubio Castro defende essa espécie de nacionalismo cívico, respeitoso das diferenças, e baseado na relevância política da nacionalidade, entendida como alíquota individual de pertencimento ao poder constituinte2.

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A proposta é arriscada. O interesse de autopreservação é facilmente manipulado para justificar as medidas deliberada ou disfarçadamente xenófobas no âmbito das políticas de imigração dos países ricos3. Para solucionar esse impasse, deve-se enfrentar uma grande falácia: a de que o elemento nacional está sob ameaça das culturas bárbaras dos povos imigrantes. Será possível repensar os nacionalismos, para que deixem de ser utilizados ideologicamente como instrumento de manipulação popular?

É preciso levar em conta a fragilidade de base dos movimentos nacionalistas: fundamentam-se no conceito tradicional de nação, calcado em abstrações que "imaginam" uma "homogeneidade" populacional que é tomada por certa, muito embora tal homogeneidade não exista no mundo real. Essas abstrações invisibilizam ou mesmo reprimem as diferenças existentes na sociedade em prol da figura (abstrata) de um "cidadão ideal", imaginado com as características da classe detentora do poder. Por isso, o nacionalismo costuma ir muito além da "união de um povo contra os inimigos" (apesar de servir para isso em tempos de guerra). O nacionalismo constitui-se em fundamento ideológico a justificar a repressão de parte desse povo em prol de uma uniformidade que certamente beneficiará apenas a parte dominante da sociedade (e assim funcionará ininterruptamente, em tempos de guerra e de paz)4.

Exemplos históricos induzem a reprovar os nacionalismos convertidos em instrumentos de tomada de poder. Por isso, cabe aqui a referência a Frantz Fanon5, que vai ao cerne da questão do nacionalismo para advertir, com clarividência, que o nacionalismo, como projeto, não é nada mais que a ausência de projeto. E, mais além, que o nacionalismo radicalizado converte-se em racismo. O sentimento nacional deve ser respeitado, mas em nome de um projeto de libertação que olhe para o futuro. Não basta desejar a autonomia, a superação das dificuldades, dias melhores. É necessário planejar esses dias melhores, discutir como se alcançará o objeti-

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vo, que não é a simples independência, mas a construção de uma sociedade mais justa. Com efeito:

el nacionalismo nos es una doctrina política, no es un programa. Si se quiere evitar realmente al país ese retroceso, esas interrupciones, esas fallas, hay que pasar rápidamente de la conciencia nacional a la conciencia política y social. [..] El nacionalismo, si no se hace explícito, si no se enriquece y se profundiza, si no se transforma rápidamente en consciencia política y social, en humanismo, conduce a un callejón sin salida.6

Habermas também advertiu que "no mundo, tal qual o conhecemos, é o acaso histórico, normalmente o simples resultado de conflitos armados, guerras e guerras civis, quem decide a quem caberá, em cada caso, o exercício do poder e definirá as fronteiras controvertidas de um Estado"7, e que o nacionalismo é alimento para esse tipo de conflito. Por isso, afirma que "enquanto todos os habitantes gozarem dos mesmos direitos e ninguém for discriminado, não existe nenhum motivo normativamente convincente para a separação da comunidade existente"8.

Para Herrera Flores9, o nacionalismo é um produto ideológico que impede os seres humanos de "reagir simbolicamente frente ao mundo" (expressar sua maneira de ser, sua diferença); e não serve para nada mais que manter as estruturas do poder à custa da propulsão da vaidade, do orgulho, da intolerância e da violência. Por não levar ao diálogo, mas ao embrutecimento, deve ser rechaçado.

Assim, concluímos que o nacionalismo, por si mesmo, não será fator de impulso da solidariedade social, pois a solidariedade dos nacionalistas é restrita ao grupo nacional, que pode não representar todos os habitantes do país. Como o nacionalismo é excludente, ainda que a solução óbvia (eliminar do país os não nacionais) pudesse ser implementada, algumas novas diferenças surgiriam entre as pessoas, e essas diferenças passariam a ser relevantes, incômodas, "insuperáveis". Sempre funciona desta

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maneira quando a lógica que permeia a relação entre pessoas é a lógica da dominação. Assim, o grande desafio das sociedades atuais permanece o mesmo: fazer valer os ideais de liberdade e igualdade, sem preferência de um sobre o outro ou, em outras palavras, buscar uma cidadania democrática mais forte e, por esse caminho, recuperar a solidariedade perdida entre os "indivíduos" que integram hoje tão apaticamente as atomizadas nações.

2. Distinções por motivo de nacionalidade: o critério da responsabilidade

O nacionalismo não pode estar na base de qualquer raciocínio jurídico. Isso é mais evidente, ainda, quando se trata de distinguir, de compatibilizar o princípio da igualdade com as diferenças de nacionalidade. Nada obstante, o fato é que a igualdade entre nacionais e estrangeiros é mitigada, pelo menos no que diz com dois...

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