Memórias de sangue: a história da caça à baleia no litoral Paraibano

AutorLaerte Fernando Levai/Verônica Martins de Souza
CargoPromotor de Justiça no Estado de São Paulo/Bacharel em Ecologia pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH)
Páginas269-292

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Antigo maquinário utilizado para puxar as baleias à plataforrna de retalhamento da COPESBRA, em Lucena/PB.

1. Introdução

Por trás das máquinas carcomidas, das engrenagens enferrujadas e das fornalhas abandonadas pelo tempo, que ora dormitam entre as ruínas da estação baleeira da COPESBRA, é possível ver o mar. Dali vinha o navio "Koio Maru", vitorioso em sua saga inglória, rumo à plataforma de retalhamento na

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praia do Costinha. Vê-se, ainda, pendurados nas laterais do barco japonês, os corpos inertes de jovens baleias que viajaram da Antártida até a Paraíba, para cumprir o ritual da perpetuação da espécie. A primeira é uma baleia minke, adolescente, cuja idade é possível calcular pelas poucas listras que têm em seu ventre. Homens munidos de foices, ganchos e facões lançam-se, então, sobre ela. Em poucas horas nada sobrará, nem barbatanas, nem carne, nem ossos, nem nada. Vê-se, agora, outra baleia sendo içada pela indústria da morte. Desta vez é um macho, com um enorme buraco de arpão aberto no costado, provavelmente o animal que fecundaria a fêmea, há pouco esquartejada. Depois vêm os outros animais abatidos, que desaparecem, um a um, diante dos nossos olhos desolados.

Essa era a rotina da COPESBRA, empresa nipo-brasileira que operou durante vinte e nove anos na praia do Costinha, em Lucena. Durante a temporada de caça, dia após dia, noite após noite, centenas de funcionários cumpriam suas tarefas maca-bras, obtendo assim "matéria-prima" para exportação ou consumo interno. Com o advento da Lei dos Cetáceos, proibitiva de sua pesca ou molestamento intencional, a COPESBRA fechou. O lugar foi transformado em pousada, com parque aquático e museu da baleia, mas tornou a fechar. Hoje o que existe ali são as lembranças insepultas de um passado ainda recente. Na antiga sala da administração há imagens fotográficas que documentam a caça e o corte dos cetáceos recém-capturados. Em outro cômodo, onde funcionava o museu, encontram-se os instrumentos utilizados no massacre, todos aparentemente mortos, como as lanças de ferro e os arpões eletrônicos ou com ponta explosiva. Tais equipamentos, que outrora provocaram muita dor e morte, estão todos ali, em silêncio, como que à espera de um tardio julgamento.

Vê-se, ao longe, o último barco-caçador. É o navio "Cabo Branco", ancorado na memória das nossas inquietações. Adormecido na proa, ali está o canhão impiedoso que ceifou a vida de milhares de criaturas inteligentes e sensíveis, que vie-

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ram para celebrar a vida e encontraram o espectro da morte. Um navio-fantasma. Talvez por isso é que as águas ao seu redor parecem rubras, vestígios de um tempo que não se apaga. Em volta desse cenário morto - ossos, ferrugem, mato crescido, urtigas, fotografias desbotadas, gritos submersos-, alguma coisa parece ainda estar muito viva em nós. É o medo de que um dia tamanho pesadelo possa retornar. Por isso escrevemos este artigo. Para jamais esquecer.

2. Nossas irmãs desconhecidas

As baleias são criaturas magníficas. Com cérebro extraordinário, talvez até superior ao do homem. Criaturas que possuem uma linguagem. Têm um cérebro de tal modo desenvolvido que se pode constatar o estado emocional de cada uma delas por meio de seu sistema de ecos sonoros. Falam. Compreendem-se. Navegam. Localizam os alimentos. E tudo na mesma hora. Não conhecemos nenhum outro cérebro capaz de entregar-se a tantas funções ao mesmo tempo. Trata-se de cérebros que tiveram 50 milhões de anos para evoluir. São as mais afáveis, gentis e bem-humoradas criaturas que esse mundo desgraçado já conheceu. Criaturas que podem nos matar com um golpe de sua cauda, mas que nos deixam trepar em suas costas e brincar conosco. Adoram brincar com os homens. Que imenso coração elas têm.1O depoimento acima transcrito, ao contrário do que possa parecer, não é de nenhum ambientalista ou biólogo marinho. Também não é de nenhum filósofo pelos direitos animais. Tratase do relato de um escritor, John Gordon Davis, que vivenciou de perto essa que é uma das mais cruéis atividades econômicas do mundo, em meio a uma rotina permeada por lanças, arpões e sangue escorrido sobre as águas. Em seu romance "Leviatã", ele denuncia o sofrimento das baleias vítimas da ambição humana.

Por mais que se tente distanciar os animais do homem, como se aqueles nada mais fossem do que criaturas brutas destinadas ao nosso uso e exploração, a biologia - em termos neurofisiológicos - sempre torna a refazer a aproximação entre as espécies.

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Sabe-se, afinal, que a capacidade de sentir e de sofrer, ao contrário da concepção cartesiana que deixou raízes profundas no pensamento filosófico moderno, não se constitui em um privilégio do ser humano. E se os animais são seres sensíveis, atributo que lhes deveria assegurar, no mínimo, a proteção da lei, o que não dizer daqueles que têm atividade respiratória pulmonar, que amamentam seus filhotes e que demonstram sentimentos recíprocos de afeto e solidariedade? Sim, estamos falando das baleias, criaturas que em outras eras já teriam habitado o meio terrestre. Que o diga a herança ancestral visível em seus membros anteriores, dotados de falanges, e nos posteriores, atualmente atrofiados.

Estudos de observação comportamental têm comprovado que os cetáceos possuem códigos e dialetos bastante sutis, além de condutas típicas relacionadas à preservação da espécie. Uma baleia cachalote macho, por exemplo, pode emitir sons impregnados de musicalidade, a sua canção submersa para atrair a fêmea. A baleia cinzenta, da mesma forma que os golfinhos, desenvolve um nado sincronizado e repleto de símbolos ainda não compreendidos pelo homem. E o que não dizer da jubarte, conhecida como a bailarina dos mares? Já as baleias mamães não abandonam os filhotes em hipótese alguma e, para defendê-los, são capazes de sacrificar a própria vida. Animais inteligentes e sociáveis, as baleias muito pereceram nas mãos daqueles que se vangloriam, indevidamente, de serem os únicos seres racionais do planeta.

Os mamíferos do mar, afora sua intrigante capacidade de comunicação, também possuem normas comunitárias bem definidas. Costumam permanecer, durante o verão austral - de novembro a abril, em regra -, nas águas geladas do pólo sul, período em que o oceano apresenta maior fertilidade orgânica, rico em plâncton e krill. Isso faz com que uma baleia adulta acumule bastante gordura na pele, o que lhe servirá de reserva alimentar. Como os filhotes têm menos resistência às baixas temperaturas, a natureza se encarrega de agir por eles. Surge daí o sazonal

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fenômeno da migração dos cetáceos, quando o grupo decide iniciar sua longa viagem rumo aos mares tropicais.

Por mais paradoxal que possa parecer, é justamente nesse período que os caçadores lançam-se ao mar com o firme propósito de matá-las. Aproveitando-se do momento em que elas vêm à superfície para respirar, cravam-lhes as lanças e os arpões. Durante séculos, pelos oceanos do mundo, travaram-se sangrentas batalhas de vida e morte: de um lado, a baleia surpreendida em sua natural inocência; de outro lado, o homem-caçador arremessando seus ferros pontiagudos. Uma dessas cenas é descrita por Herman Melville em "Moby Dick", escrito em 1851:

Quem poderá dizer quão pavorosos devem ter sido, para o cachalote ferido, esses vastos fantasmas adejando-lhe sobre a cabeça? Seus movimentos denunciavam claramente que estava exausto. Na maioria dos animais de terra há certas válvulas ou comportas em muitas das veias, por meio das quais, quando feridos, o fluxo de sangue, até certo ponto pelo menos, é instantaneamente cortado em certas direções. Com a baleia não se dá isso; uma de suas peculiaridades é ter uma estrutura inteiramente não valvular dos vasos sanguíneos, de modo que, quando perfurada, ainda que por uma arma tão pequena, para ela, como um arpão, uma drenagem de morte se inicia imediatamente em todo o seu sistema arterial. Tão vasta é a quantidade de sangue dentro dela, e tão distantes e numerosas suas fontes internas, que ficará sangrando, e sangrando, por um período considerável.2Em 1879 o norueguês Sven Foyd inventou o canhão lançaarpão, com ponta explosiva, o que fez disparar as estatísticas da caça. Depois vieram os navios-fábrica, capazes de içar as baleias ao convés e retalhá-las ali mesmo. Daquele período, até o ano de 1939, registra Jean-Jacques Barloy, cerca de 800 mil baleias foram capturadas no mundo, para atender à ganância das indústrias pesqueiras.3 E o massacre, agora com os recursos tecnológicos, parecia não ter mais fim. Com a ação manual definitivamente substituída por canhões eletrônicos de alta precisão, as baleias passaram a trilhar o caminho da extinção.

Nossas irmãs desconhecidas, principais vítimas da cobiça humana nos mares brasileiros, têm nome, sobrenome e apelido:

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Balaenoptera bonariensis (Minke), Megaptera novaeangliae (Jubarte), Physeter macrocephalus (Cachalote) e Balaenoptera borealis (baleiasei). Talvez seja interessante conhecer um pouco de cada uma delas.

A baleia minke, dotada de impressionante capacidade pulmonar, nada 9 mil quilômetros rumo à região equatoriana, onde se reproduzirá. Essa espécie, vulgarmente denominada "baleiaanã", é vista em toda a costa litorânea brasileira, tendo sido um dos principais alvos dos arpões baleeiros. Pode viver até 50 anos, mas a maioria das baleias capturadas pelos barcos de caça era ainda adolescente, no início da fase reprodutiva. Apenas nas águas paraibanas, segundo as estatísticas da COPESBRA, cerca de 5 mil baleias minke foram capturadas, mortas e retalhadas pela indústria pesqueira.

Quanto à jubarte, que pode alcançar até 40 toneladas de peso, distingue-se facilmente das outras baleias pelo formato de sua cauda, semelhante às asas abertas de um pássaro...

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