Memorias Reveladas: transitional justice and the gloomy legacy of the Brazilian military dictatorship/Memorias Reveladas: justica de transicao e o sombrio legado da ditadura militar.

AutorStampa, Inez

Notas introdutorias

Passados cinquenta anos do Golpe de Estado de 1964, e pouco menos de tres decadas do fim do ultimo governo militar brasileiro, o debate publico sobre os direitos humanos (1), no Brasil, experimenta um momento singular e estimulante, com a crescente pressao da sociedade civil visando ao esclarecimento de casos de graves violacoes de direitos humanos e por maior transparencia publica (2).

Contudo, persiste, ainda, a necessidade de reforcar o entendimento coletivo de que o periodo da ditadura militar, que vai de 1 de abril de 1964 a 15 de marco de 1985, foi marcado, na historia politica e social brasileira, por violacoes sistematicas de direitos humanos--inclusive assassinatos, desaparecimentos forcados e pela pratica da tortura por motivos politicos--, bem como pela negacao de valores democraticos e pelo arbitrio do Estado. De acordo com pesquisa publicada, em marco de 2014, pelo Datafolha, para 16% da populacao brasileira tanto faz se o governo e democratico ou uma ditadura, 14% defendem que em certas circunstancias e melhor uma ditadura do que um regime democratico, e 8% que nao souberam responder (DATAFOLHA, 2014).

Neste ponto, cabe destacar que parte da historiografia nacional refere-se a caracterizacao do golpe, e da propria ditadura, como "civilmilitar" e nao, apenas, "militar". Conforme defende Silva (2003, p. 271), e preciso considerar, na caracterizacao do regime, as "intimas e complementares relacoes entre empresarios e militares na conspiracao contra o regime constitucional no Brasil". Neste artigo, contudo, optou-se por manter a expressao "ditadura militar", por entendermos que o carater militar foi preponderante na estrutura estatal do regime, embora a estreita vinculacao com a sociedade civil seja considerada fundamental para a contextualizacao e compreensao do periodo.

O quadro de desconhecimento ou negacao dos valores democraticos, associado a nao responsabilizacao de perpetradores de violacoes de direitos humanos, traz impactos diretos para a atuacao dos orgaos de seguranca, como e evidenciado pelo fato de que a policia brasileira mata mais e comete mais abusos hoje do que no periodo da ditadura, conforme reconhecido pelo proprio governo federal (SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS/PR, 2010, p. 37). Assim, sem memoria e sem justica, reproduzemse e multiplicam-se praticas, usos e costumes lastreados na impunidade e no esquecimento.

Nesse contexto, a adocao de politicas especificas de memoria para enfrentar esse passado esta no centro da chamada "justica de transicao", cujo conceito sera abordado mais adiante. Por ora, cabe lembrar que a justica de transicao tem por funcao nao somente garantir o entendimento do que ocorreu, mas, tambem, reforcar a compreensao de que nao e possivel a um povo (re) conhecer a si proprio sem entender o legado de sua historia politica e social. Nesse processo, as iniciativas voltadas para a recuperacao e difusao de informacoes contidas nos arquivos da repressao e da resistencia assumem posicao de destaque, em meio a tensoes e disputas pela memoria.

Defender que a memoria e um bem publico nao significa deixar de reconhecer que ela mesma e resultado dos contextos e dos agentes que a constroem (CARBONARI, 2010). Assim, a memoria pode ser apropriada e transformada para cumprir diferentes objetivos e agendas. Sobre este aspecto, cabe lembrar a afirmacao de Marx e Engels (1998, p. 41) de que as "as ideias da classe dominante sao, em cada epoca, as ideias dominantes, isto e, a classe que tem a forca material na sociedade e, ao mesmo tempo, a sua forca intelectual dominante". Extrapolando a afirmacao, e possivel afirmar que a memoria de uma epoca tambem e a memoria da classe dominante, dai a importancia de disputa-la.

Da mesma forma, e importante observar que a memoria pode ser construida e reconstruida a partir de fontes diversas, como, por exemplo, os documentos recolhidos aos arquivos brasileiros, os livros de uma determinada biblioteca publica, os registros audiovisuais de um colecionador particular ou, ainda, os relatos orais de pessoas que viveram determinadas situacoes. Isto e, a multiplicidade de fontes encerra desafios e possibilidades.

Tendo esse horizonte em vista, buscaremos discutir, neste artigo, a experiencia do Centro de Referencia das Lutas Politicas no Brasil (19641985) --Memorias Reveladas, iniciativa criada pelo governo federal, em 2009, com o objetivo de promover a difusao de informacoes contidas em conjuntos documentais do periodo da ditadura. Para tanto, buscaremos caracterizar o Memorias Reveladas, o que inclui analisar criticamente seus desafios, e situa-lo como parte de um quadro mais amplo de iniciativas recentes da justica de transicao no Brasil e na America do Sul.

O Brasil, assim como outros paises sul-americanos, passou pela experiencia de um regime ditatorial, com protagonismo das Forcas Armadas, na segunda metade do seculo XX, como a Argentina (1976-1983), o Uruguai (1973-1985) e o Chile (1973-1990). Mas, ao contrario do Brasil, esses paises aplicaram, logo apos o restabelecimento de eleicoes diretas, mecanismos de justica de transicao com o objetivo de averiguar violacoes de direitos humanos praticadas no periodo ditatorial, incluindo mecanismos judiciais voltados a punicao de torturadores e assassinos.

Em sentido contrario, os primeiros mecanismos brasileiros foram estabelecidos apenas na segunda metade da decada de 1990, isto e, quase uma decada apos a transicao politica, e sem que ocorresse a responsabilizacao criminal ou mesmo civel de perpetradores de violacoes. O que pode ser explicado, pelo menos em parte, a partir das diferentes cir cunstancias historicas que condicionaram as transicoes do Brasil e de outros paises da America do Sul.

Na Argentina, por exemplo, as eleicoes diretas foram restabelecidas em 1983, mesmo ano no qual se encerrou o governo militar e foi instalada a comissao da verdade daquele pais, denominada de Comision Nacional sobre la Desaparicion de Personas (Conadep). Tal rapidez derivou, em grade parte, da desmoralizacao do regime militar argentino em virtude da derrota na Guerra das Malvinas (1982). Sem tempo para organizar a transicao, a maior parte dos lideres da ditatura argentina terminou na cadeia, incluindo o ultimo presidente da ditadura, Reynaldo Bignone, condenado, em 2011, aos 83 anos, a prisao perpetua por crime de lesa-humanidade.

Portanto, e possivel afirmar que a experiencia brasileira de justica de transicao e excepcionalmente tardia (3), ainda que o seu ritmo tenha se acelerado nos ultimos anos, com a criacao, em 2009, do Centro de Referencia Memorias Reveladas e, em 2011, com o estabelecimento da Comissao Nacional da Verdade (CNV) e com a promulgacao da Lei de Acesso as Informacoes (LAI) (4).

Justica de transicao: conceitos e desenvolvimento

No Brasil, a expressao "justica de transicao" vem, em anos recentes (5), popularizando-se na imprensa e na academia, o que deriva, em grande parte, da criacao da Comissao Nacional da Verdade e de dezenas de outras "comissoes da verdade" estaduais, municipais, universitarias etc. De forma a esclarecer o que exatamente queremos dizer quando nos referimos a justica de transicao, cabe apontar, inicialmente, que entendemos esse conceito como aquele referente ao:

Amplo espectro de processos e mecanismos utilizados pela sociedade para que esta chegue a um determinado acordo sobre violacoes de direitos humanos ocorridas no passado, de forma a garantir a responsabilizacao dos culpados, promover a justica e alcancar a reconciliacao. Isso pode incluir tanto mecanismos judiciais como extrajudiciais, com diferentes niveis de participacao da comunidade internacional [...] (ORGANIZACAO DAS NACOES UNIDAS, 2004, p. 4).

Com base nessa definicao, consagrada pela Organizacao das Nacoes Unidas (ONU), Soares (2010) formulou um verbete no Dicionario de Direitos Humanos da Escola Superior do Ministerio Publico da Uniao, disponivel na Internet (6), no qual define a justica de transicao como o:

[...] conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e nao judiciais) e estrategias utilizados para enfrentar o legado de violencia em massa do passado, atribuir responsabilidades, exigir a efetividade do direito a memoria e a verdade, fortalecer as instituicoes com valores democraticos e para garantir a nao repeticao das atrocidades. Por seu turno, Teitel (2011, p. 135), ao propor uma "genealogia" da justica de transicao, defende que ela pode ser definida como "a concepcao de justica associada a periodos de mudanca politica, caracterizados por respostas no ambito juridico que tem por objetivo enfrentar os crimes cometidos por regimes opressores do passado". Pouco difere esta definicao da proposta por Van Zyl (2011, p. 47), segundo a qual a justica de transicao e "o esforco para a construcao da paz sustentavel apos um periodo de conflito, violencia em massa ou violacao sistematica dos direitos humanos".

A partir dessas definicoes, pode-se extrair que a justica de transicao nao e uma justica especializada (7), ou tematica, com competencia exclusiva para tratar de casos que envolvam violacoes macicas de direitos humanos. Antes, trata-se de um conjunto de "mecanismos, abordagens e estrategias" ou de "processos e mecanismos" utilizados em periodos de mudanca politica para enfrentar um legado historico de violacoes de direitos humanos. Nessa direcao, Mezarobba afirma que os "mecanismos, abordagens e estrategias" consistem em iniciativas tais como:

[...] processar criminosos; estabelecer comissoes de verdade e outras formas de investigacao a respeito do passado; esforcos de reconciliacao em sociedades fraturadas; desenvolvimento de programas de reparacao para aqueles que foram mais afetados pela violencia ou abusos; iniciativas de memoria e lembranca em torno das vitimas; e a reforma de um amplo espectro de instituicoes publicas abusivas (como os servicos de seguranca, policial ou militar). (2009, p. 37). As comissoes da verdade, bem como as iniciativas voltadas a abertura de...

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