Memórias do professor Cançado Trindade

AutorConselho Editorial da Revista dos Estudantes de Direito da UnB
Páginas1-22
Memórias do Prof. Cançado Trindade
ARevista dos Estudantes de Direito da UnB, fiel ao compromisso de resgate da memória
institucional da Universidade de Brasília, teve a honra de entrevistar, em 21 de dezembro de
2008, o Professor Antônio Augusto Cançado Trindade. Poucos dias antes de sua mudança para
Haia, Holanda, o recém-eleito Juiz da Corte Internacional de Justiça recebeu-nos em sua casa
para uma longa e frutífera conversa, que logo se transformou em uma verdadeira aula de Direito,
Filosofia e, talvez o mais importante, de vida. Contando com a maior votação jamais vista na
história para compor essa Corte, o Professor da UnB recebeu 163 votos na Assembléia Geral e
14 no Conselho de Segurança – com a isolada abstenção dos Estados Unidos.
Nascido em Belo Horizonte, o Prof. Cançado Trindade é autor de 35 livros e mais de 450 artigos
científicos publicados em diversos idiomas e países. Sua atuação na seara do Direito
Internacional dos Direitos Humanos é notável. Durante o processo constituinte, foi ele que
propôs, como Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores, a inclusão do parágrafo
§ 2o, artigo 5o, da Constituição Federal de 1988. Ainda como Consultor Jurídico, Cançado
Trindade elaborou uma série de pareceres favoráveis à ratificação brasileira de vários tratados
internacionais de direitos humanos, tanto em nível global quanto regional. Em 1995, foi eleito
Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, tendo presidido-a por dois mandatos
seguidos (1999-2001; 2002-2003). Durante essa época, Cançado Trindade teve de enfrentar a
pressão internacional contra a Corte exercida por regimes autoritários, como o de Fujimori, no
Peru, que tentou dissolver sua composição.
Membro de uma série de instituições internacionalmente renomadas, como o Curatorium da
Academia de Direito Internacional da Haia e o Institut de Droit International, o Prof. Cançado
Trindade lecionou por mais de três décadas no Instituto de Relações Internacionais (IREL) da
UnB e no Instituto Rio Branco. Na entrevista que se segue, o Professor conta sobre sua formação
acadêmica dos tempos de Belo Horizonte, bem como sobre sua longa trajetória profissional
viajando mundo afora. Permeada de conselhos aos jovens recém-ingressados no universo do
Direito, a conversa revela as impressões e experiências de um Mestre que, certamente, ficará na
história de nossa Universidade, assim como a UnB ficará na dele.
REDUnB: A gente gostaria de saber sobre as suas motivações para cursar Direito. Como foi a
juventude e a escolha pelo curso?
Prof. Cançado Trindade: Penso e estou muito convencido de que as vocações se manifestam
no momento certo. Para alguns, mais prematuramente; para outros, um pouco depois. Mas
normalmente as vocações marcantes despertam cedo na vida. Eu sempre acreditei que o
conhecimento humano, sendo seletivo, só é retido em relação àquilo de que a gente gosta
realmente, quer dizer, em relação àquilo com que a gente se identifica. Muito cedo na vida, e por
razões que escapam a minha compreensão, – mas justamente porque eu creio que a base do
conhecimento é afetiva, essencialmente, – eu comecei a ler o Recueil des Cours, coletânea dos
cursos da Academia de Direito Internacional da Haia, e me identifiquei muito com essa
disciplina. Na verdade, eu comecei a ler quando estava me preparando para o vestibular. Eu me
decidi pelo Direito sem ter recebido influência alguma de ninguém, porque realmente comecei a
ler e gostei daquilo que eu estava lendo. No decorrer do curso na UFMG, eu me concentrei ainda
mais nessa área. Muitas vezes eu ia à biblioteca, até mesmo durante as aulas de outras
disciplinas, e passava horas a fio lendo e fazendo resumos das leituras do Recueil des Cours. Eu
resumia todos os cursos que me chamavam a atenção. Tenho este compêndio até hoje guardado e
de outras leituras que fiz na juventude, que me foram de enorme utilidade. Anos depois, as
recordações destas leituras afloraram à minha mente, quando delas necessitava. Em suma, apenas
para responder a pergunta, penso que cada um encontra o seu caminho sem nenhuma forma pré-
estabelecida. Cada um, mais cedo ou mais tarde, se identifica com algo que vem a dar sentido à
própria existência, e para mim foi o Direito e o Direito Internacional, sem que eu tivesse tido
uma influência de alguém ou tivesse sido condicionado por alguma pessoa. De forma alguma.
Foi algo pessoal, foi algo imanente. Assim, busquei o meu caminho, sem que para isso existisse
qualquer sinal, qualquer trilho. Como nos versos de Antonio Machado, caminhante não há
caminho, se traça o caminho ao andar. Esta idéia encontra-se também na Divina Comédia de
Dante. Pouco antes de concluir o curso de bacharelado, fui até à Europa, a dois países, à França e
ao Reino Unido, onde realizei uma série de entrevistas. Depois regressei a Belo Horizonte,
terminei o bacharelado na Faculdade de Direito da UFMG, em 1971, e imediatamente comecei a
fazer a pós-graduação na UFMG, mas logo tranquei a matrícula e parti ao Reino Unido.
Organizei as minhas atividades da seguinte maneira: cada ano acadêmico, - que começa em
setembro, no hemisfério norte, e termina em fins de maio, ou início de junho, - eu passava, dos
doze meses do ano, nove em Cambridge, no Reino Unido, e os outros três restantes, no período
de verão europeu, sempre em Estrasburgo, na França. Isso ocorreu no momento em que a Corte
Européia de Direitos Humanos começava a funcionar regularmente, e eu mantive essa
programação de atividades durante praticamente toda a década de 1970, - de 1972 a 1978, - pois
fiz seguidamente o mestrado e o doutorado. Assim, tive uma visão bastante ampla por estar, na
época, estudando e me formando em países de tradições jurídicas distintas. Eu me recordo de que
um dos primeiros artigos que eu escrevi, e publiquei na França, foi sobre o método comparado
no Direito Internacional, mostrando as influências tanto do common law como do droit civil no
Direito Internacional. Creio que esta combinação de uma formação em dois países distintos foi
de enorme utilidade para mim, para não me condicionar por nenhum escola específica de
pensamento. Sempre me considerei um livre pensador e sempre defendi o livre pensamento e a
busca, por parte de cada um, de suas próprias respostas às perguntas que fazem a si mesmos.
Sempre me opus a isso que hoje nós chamamos de “marco teórico”. Não acredito em marco
teórico, sou contrário a marco teórico e creio que é uma moda nefasta que se estabeleceu em
nossas Faculdades. Cada um deve buscar por si mesmo as respostas para as perguntas que
surgem no decorrer dos anos de formação tanto pessoal como profissional. Não existe uma
fórmula apriorística para todos, e creio que cada um deve seguir aquilo com que se identifica e
abrir o seu próprio caminho. Basicamente, essa é a lição da minha experiência nos meus passos
iniciais.
REDUnB: E a graduação em Letras?
Prof. Cançado Trindade: Ao mesmo tempo que eu cursei Direito, eu era apaixonado por
Literatura, o que me fez estudar tanto na Cultura Inglesa como na Aliança Francesa. Era uma
época de grande fervor intelectual, final dos anos sessenta, e eu também fazia cursos de filosofia
e cinema à noite. Naquela época, se uma pessoa obtivesse o diploma máximo em um dos dois
idiomas ou em ambos, podia fazer a licenciatura em Letras e já entrar no final do curso, no

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