Memórias entrelaçadas: versões do passado na alemanha e no Japão, 1945-2001

AutorSebastian Conrad
CargoDoutor. Universitätsprofessor, Freie Universität Berlin, Friedrich-Meinecke-Institut, Berlim, Alemanha
Páginas131-148
Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 44, p. 130-148, jan./abr. 2020.
ISSN 2175-7976 DOI https://doi.org/10.5007/2175-7976.2020.e71081 131/156
RESUMO
Mesmo em nossa era da globalização, os estudos de história da memória tendem a reforçar a categoria
de nação. Isso vale também para as interpretações das diferentes maneiras pelas quais a Alemanha
Ocidental e o Japão lidaram com suas próprias atrocidades e derrotas na Segunda Guerra Mundial.
Frequentemente, os historiadores opõem o engajamento crítico com o passado recente na Alemanha
à recusa japonesa em reconhecer, no pós-guerra, suas próprias responsabilidades. A causa desses
desenvolvimentos divergentes é, segundo essa linha de raciocínio, invariavelmente encontrada
na história interna desses dois países quando não na psique coletiva alemã e na japonesa. Em
contrapartida, este artigo argumenta que debates sobre memória não se desenrolam em isolamento
nacional, e que suas diferentes trajetórias precisam ser situadas em um contexto global.
PALAVRAS-CHAVE
Alemanha. Japão. Memória.
ABSTRACT
Even in our age of globalization, studies in the history of memory tend to reinforce the category of the
nation. This is also true for interpretations of the dierent ways in which West Germany and Japan
have come to terms with the atrocities, and with defeat, in World War II. Frequently, historians oppose
a critical engagement with the recent past in Germany to the refusal to acknowledge one’s own role
as perpetrator in post-war Japan; the reason for these divergent developments are then invariably
found in the two countries’ domestic history, if not in the collective German and Japanese psyche. This
article argues, by contrast, that debates about memory do not unfold in national isolation, and that their
dierent trajectories need to be situated in a global context.
KEYWORDS
Germany. Japan. Memory.
Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 44, p. 130-148, jan./abr. 2020.
ISSN 2175-7976 DOI https://doi.org/10.5007/2175-7976.2020.e71081 132/156
Sebastian Conrad
Na história da memória, o paradigma nacional continua a reinar supremo. Pode
soar surpreendente em um momento no qual a prossão histórica começa
a descartar a categoria de nação e a produzir estudos transnacionais.
Comparações internacionais e histórias correlacionadas, assim como enquadramentos
mais amplos da história europeia, pós-colonial ou mundial, parecem gradualmente
substituir os estreitos limites do paradigma oitocentista da história nacional.
Estudos de memória, no entanto, continuam a se apegar à nação com uma
teimosia peculiar. Lembrar e esquecer são os meios pelos quais as nações enfrentam
seus respectivos passados. Ao mesmo tempo, elas aparecem como produtos da
memória – forjadas em comunidades imaginadas a partir de séries de efemérides, de
discursos públicos e de visitas a lugares de memória. Nesse esquema, um momento
idealizado ou traumático é lembrado internamente por metáforas de um “passado
que não passa”. A memória, portanto, aparece em larga medida como uma relação
temporal entre momentos signicativos do passado nacional que permanecem como
lembranças para as gerações futuras. Nos casos da Alemanha e do Japão do pós-
-guerra, o passado e o presente são separados por rupturas históricas e “horas-zero”
que, argumenta-se, precisam ser transpostas de modo a saldar contas com uma
experiência traumática que assombra ambas as sociedades. Nessa perspectiva, a
memória aparece como a expressão quase direta de uma mentalidade nacional, que
indica a capacidade de uma nação de lamentar, aprender e amadurecer (por meio da
superação de estreitas perspectivas nacionalistas).1
A linguagem da temporalidade produz, assim, a imagem familiar da interpretação
do passado como uma questão de cultura nacional. A imagem convencional do Japão
como inerentemente incapaz de lidar criticamente com sua história agressiva e
expansionista se enquadra nessa categoria. Essa “incapacidade” e “deciência”, por
um lado, são frequentemente expressas em termos culturais e explicadas como o
produto do caráter nacional.2 A preocupação alemã com o passado nazista, por outro
lado, é atribuída a um processo de aprendizado coletivo. A tese de Daniel Goldhagen
(1996) de que o antissemitismo inato alemão só foi superado com sucesso após 1945
é apenas a versão mais recente desse paradigma culturalista.
Afora as tendências unicadoras de tais relatos – que homogeneízam a nação
de forma sincrônica como memória-comunidade e de maneira diacrônica através das
gerações –, essa perspectiva transmite uma negligência quase xenófoba dos fatores
vinculados ao que está fora do território nacional. A história da memória é retratada
através de uma “falta de visão periférica” do passado. Nesse caso, inuências e
entrelaçamentos com outras memórias nacionais tornam-se marginais. A memória
é, portanto, descrita como o último domínio da autonomia nacional. Mas podemos
interpretar, para dar apenas um exemplo, a famosa visita do primeiro-ministro japonês
Nakasone ao santuário Yasukuni em 1982 – para homenagear os mortos de guerra em
um lugar de memória simbolicamente apropriado por grupos nacionalistas – apenas
em termos de desenvolvimentos internos japoneses? Não poderíamos ler esse
evento particular como uma articulação com um contexto global que pode, para ns
ilustrativos, ser associado aos nomes de Margaret Thatcher, Helmut Kohl e Ronald
1 A “habilidade de lamentar” se refere, é claro, a Alexander Mitscherlich e Margarete Mitscherlich (1968).
2 Mesmo o magistral Wages of Guilt: Memories of War in Germany and Japan (1994), de Ian Buruma,
não está livre dessa tendência.

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