O meio ambiente de trabalho e o direito à proteção jurídica contra a dispensa arbitrária: um debate urgente e necessário

AutorValdete Souto Severo - Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas294-305

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Valdete Souto Severo1

Cláudio Jannotti da Rocha2

Introdução

A hipótese que aqui defenderemos é a de que o direito à proteção jurídica contra a perda do emprego de maneira arbitrária é elemento central da regulação estatal, em uma sociedade capitalista de produção. Na verdade, a própria história da humanidade, por meio do surgimento do Estado de Direito, nos ensina que o sistema capitalista depende da existência da relação de emprego, sendo ela um dos seus principais alicerces jurídicos. Afinal, é justamente por meio de relação de emprego que o empregado, o empregador, o Estado e a sociedade alcançam a segurança jurídica, o primeiro pois se trabalhar vai receber seu salário, o segundo que desenvolverá sua atividade econômica livremente, já que o empregado vai comparecer para trabalhar nos dias pactuados, o terceiro porquanto por meio desta relação jurídica vai arrecadar tributos (imposto de renda e previdência) e assim permite-se que a sociedade caminhe para o bem-estar social. Inclusive, afirma-se que o próprio capitalismo se fortalece e melhor se desenvolve quando o direito à proteção jurídica ao emprego se dá de maneira potencial e democrática, fomentando assim a circulação de riqueza, de bens e de pessoas e a inclusão social, vejamos Alemanha, Itália, Inglaterra, Holanda, Áustria, França, Portugal, as diretivas da União Europeia e as convenções da Organização Internacional do Trabalho.

Diante deste panorama, deve-se partir da premissa de que o direito à proteção jurídica contra a dispensa arbitrária atinge diretamente o meio ambiente de trabalho, afinal a sua ausência ou enfraquecimento enseja uma real instabilidade e insegurança no local de trabalho, porquanto o empregado vive com medo de ser dispensado inesperadamente e arbitrariamente e ao mesmo tempo coloca em risco o cumprimento de todos os demais direitos trabalhistas, e por isso afeta de

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maneira imediata e direta a forma do empregado de trabalhar, de se relacionar com seus colegas e até mesmo com seus superiores hierárquicos, afinal a angústia lhe domina, envolvendo a saúde (inclusive psicológica) e a segurança do trabalhador. Destaca-se ainda que meio ambiente de trabalho é tudo aquilo que envolve fisicamente e metafisicamente o local de trabalho e a vida do empregado, como os instrumentos de trabalho, a jornada de trabalho, o ar, o ambiente, o transporte e o bem-estar físico e mental do trabalhador.

Na realidade material das relações de trabalho, não existem direitos trabalhistas se não houver efetiva proteção contra a despedida arbitrária. Esse é, portanto, o direito dos trabalhadores e trabalhadoras que figura como condição de possibilidade de todos os demais. Sem a garantia de que permanecerá no emprego, ninguém pode, concretamente, exigir que sejam respeitadas as condições de trabalho nos patamares constitucionais e infraconstitucionais, sob pena ou medo de ser despe-dido. Basta pensarmos em exemplos simples como a exigência de anotação/registro na CTPS, realização de horas extras, troca de horários, pagamento do salário a tempo e modo, solicitação de tarefas alheias à atividade para a qual determinada pessoa foi contratada. Sem estabilidade, não há como reagir contra toda a sorte de abusos e desencontros que podem ocorrer durante a execução de um vínculo de emprego.

De plano, destacamos e esclarecemos que estabilidade e garantia contra a despedida são coisas bem diferentes. Ter estabilidade é ter o direito de não ser despedido, senão mediante apuração do cometimento de falta grave por meio de um inquérito, na forma do art. 853 da CLT. As garantias contra a despedida, como o dever de motivação, não impedem o empregador de despedir, apenas dele exigem a explicitação da razão pela qual tomou tal decisão. Mesmo empregado(a)s estáveis podem razoavelmente temer a perda do emprego ou mesmo a possibilidade de que o ambiente de trabalho se torne hostil e, desse modo, ter receio em contrapor ordens do empregador, ainda que abusivas. Ocorre que a ausência de qualquer espécie de proteção contra a despedida, como ocorre no Brasil, apesar da literali-dade do inciso I do art. 7º da Constituição, torna esse temor muito maior. Compromete, inclusive, a possibilidade de denunciar ambientes assediadores e, portanto, nocivos à saúde dos trabalhadores e trabalhadoras. Potencializa as possibilidades de assédio, de abuso na exposição desses seres humanos a condições nocivas, pois que concretamente impossibilitados de fazer valer as normas jurídicas vigentes. E de nada adianta um ordenamento recheado de direitos fundamentais, se na realidade das relações de trabalho o medo de perder o emprego sem qualquer motivação é motivo irresistível para a aquiescência e mesmo a cumplicidade em relação ao desrespeito dos mais elementares direitos fundamentais. A valorização ao emprego e ao trabalhador obedece o seguinte tripé: acesso ao posto de trabalho, sua manutenção em condições dignas e a real proteção face à dispensa arbitrária. Pouco importa ofertar o emprego e não protegê-lo.

O resultado da negação do direito à motivação da despedida é a impossibilidade concreta do exercício de todos os demais direitos trabalhistas, inclusive do direito de acesso à Justiça3. Márcio Túlio Viana há tempos vem defendendo a inviabilidade de reconhecimento da prescrição no curso do contrato de trabalho em um contexto que nega efetividade à regra-princípio do inciso I do art. 7º da Constituição brasileira, porque não há concretamente como exercer o direito à jurisdição correndo o risco de perder a fonte de subsistência4.

A prescrição no curso de um contrato de trabalho não protegido contra a despedida arbitrária, como é o caso de noventa por cento das relações trabalhistas no Brasil, é um buraco negro para onde vão os direitos fundamentais que a Constituição brasileira de 1988 consagra. Por si só, constitui argumento suficiente a evidenciar a urgente necessidade de conferirmos efetividade ao inciso I do art. 7º da Constituição brasileira, em face da abrangência de sua nocividade.

A (ausência de) proteção contra a despedida está, pois, diretamente relacionada à possibilidade de manutenção de um ambiente minimamente saudável de

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trabalho, protegendo o empregado psicologicamente de sofrer uma dispensa abrupta e inesperada, fazendo assim com que de fato ele trabalhe de maneira digna e satisfatória para realizar seu labor como o empregador espera dele. É isso que pretendemos demonstrar neste artigo.

Nossa hipótese, portanto, é a de que trabalhador(a) sujeito à lógica da possibilidade de perda do emprego a qualquer momento, sem sequer haver a necessidade de motivação do ato por parte do empregador, é um “contratante” acuado, tolhido em suas possibilidades de interação, libertação e intervenção no ambiente de trabalho, alguém que consentirá em ser revistado, que se submeterá a jornadas excessivas ou compactuará com ambientes de trabalho insalubres, e tudo isso por uma razão simples: o sistema jurídico, da forma como interpretado e aplicado atualmente, dá a ele apenas duas opções: compactuar ou perder o emprego.

Relação de emprego e proteção contra a dispensa arbitrária

Compreender a importância da proteção contra a despedida, como condição de possibilidade de exercício de todos os direitos trabalhistas, pressupõe compreender a própria regulação estatal da relação de trabalho.

A sociedade de trocas instalou-se a partir de uma relação, em grande medida, sangrenta, de dominação e espoliação. Essa dominação foi disfarçada sob o pressuposto da “libertação dos trabalhadores da servidão e da coação corporativa”, mas logo revelou-se pela conversão desses “recém-libertados” em “vendedores de si mesmos”, em razão da necessidade de subsistência, pois que “roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as garantias de sua existência, que as velhas instituições feudais lhes ofereciam”5. O discurso da modernidade, entretanto, é o da relação entre iguais, legitimada por um acordo livre de vontades (contrato). Na realidade prática, essa igualdade não existe e o contrato nada mais é do que uma das máscaras da dominação do capital sobre o trabalho.

A “liberdade” para a troca só pode ocorrer de modo sistemático se houver uma simulação de que a força da dominação não será mais exercida. Todos serão “iguais perante a lei”, sujeitando-se apenas ao Estado, que figurará, então, como um terceiro neutro, cuja função será a de garantir a propriedade privada dos meios de produção “como precondição da exploração mercantil da força de trabalho”6. A forma jurídica, emanada do Estado, estabelecerá as regras desse jogo. Pois bem, essas regras do jogo variam em cada comunidade e em cada tempo histórico. Na medida da capacidade de tensão, por parte da classe trabalhadora, mais ou menos direitos são “arrancados do capital”. De todos eles, a proteção contra a despedida é a marca da própria existência de direitos trabalhistas, vez que por meio dela permite-se um verdadeiro e democrático diálogo entre empregado e empregador. Daí porque a imposição de limites ao ato de despedir é uma realidade em todos os países capitalistas, sendo que os mais desenvolvidos já reconheceram e implementaram, em seus respectivos ordenamentos jurídicos, fortes e eficazes direitos à proteção jurídica contra a dispensa arbitrária.

De certo modo aproveitando-se do discurso da modernidade, mas enfrentando as necessidades do próprio sistema, de lidar com a luta de classes e com seus limites, o Direito do Trabalho surge historicamente como a regulação estatal da relação social e econômica que se estabelece entre os...

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