Meio ambiente laboral: relevância sociojurídica de seu reconhecimento constitucional

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas452-458

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Ver Nota1

1. Introdução

Nossa Carta Constitucional, ao enunciar o rol de atribuições reservado ao Sistema Único de Saúde, conferiu-lhe a missão de “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho” (art. 200, VIII)2. Daí já se poder afirmar que a entidade meio ambiente do trabalho não decorre de entusiasmada elucubração acadêmica, tampouco advém de aguerrido ativismo judicial ou mesmo de qualquer diligente performance sindical. Na esfera jurídica, sua autonomia conceitual e seu reconhecimento dogmático estão evidenciados, peremptoriamente, no bojo do mais importante documento de nossa sociedade: a Constituição Federal de 1988.

Essa assertiva constitucional foi firmada sem grandes pompas e vazada em local bem pouco chamativo. Não foi gravada em meio ao longo catálogo de direitos dos trabalhadores (art. 7º), muito menos veio a lume no famoso preceito que versa sobre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225). Em verdade, cuida-se mesmo de sutil adição textual consignada na parte final do último inciso do derradeiro artigo da Seção “Da Saúde”, contida no discreto Capítulo II do Título VIII da Carta Magna. É de se reconhecer, todavia, que tamanha singeleza formal contrasta com a múltipla importância do citado comando normativo – circunstância que, de regra, vem passando despercebida mesmo por atentos cultores das searas jurídicas trabalhista, constitucional e ambiental. A seguir, cuidaremos de arrazoar algo a respeito dessa poderosa relevância.

2. Relevância Sociopolítica

O reconhecimento expresso e inequívoco da categoria jurídica meio ambiente do trabalho no âmago do privilegiado solo constitucional bem revela a destacada importância sociopolítica que lhe foi conferida. Ou seja, mais que uma simples categoria jurídica erigida por um legislador ordinário, o meio ambiente do trabalho passou a ser reconhecido pelo próprio legislador constituinte originário como um locus de destacadíssima importância social, econômica, política, científica e jurídica, o que demonstra uma valia que segue bem além de sua estrita faceta jurídico-contratual de fundo meramente empregatício3. Logo, assoma-se o meio ambiente laboral, nesse contexto, como ente de nobilíssimo vulto constitucional, porquanto expressão da mais genuína soberania popular.

Claro que isso ocorreu debaixo de enorme polêmica. José Carlos do Carmo e Maria Maeno trazem à lembrança o duro embate político travado quando da Assembleia Nacional Constituinte:

Entre os que se ocupavam de temas relacionados à Saúde do Trabalhador, havia diferenças entre dois grandes blocos. O primeiro, dos setores mais progressistas, defendia que as ações em Saúde do Trabalhador fossem, sem restrições, objeto da ação do SUS. O segundo bloco, de grupos corporativistas, formados por técnicos da área e setores do empresariado, alegava que a exclusividade da fiscalização dos ambientes de trabalho deveria permanecer com o Ministério do Trabalho.4

Fábio Fernandes, de sua parte, também faz importante apanhado histórico a respeito, in verbis:

Resgatando parte dos fatos relacionados ao tema em análise ocorridos naquele importante momento histórico de nosso país, é pertinente referir a proposta de Emenda

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Constitucional apresentada pelo então deputado federal Eduardo Jorge, inclusa no inciso I do art. 57 do anteprojeto das Comissões Técnicas: ‘A saúde ocupacional é parte integrante do Sistema Único de Saúde, sendo assegurada aos trabalhadores mediante medidas que visem à eliminação de riscos de acidentes e doenças do trabalho’. Essa proposta foi mantida no anteprojeto da Comissão de Sistematização, mas alterada no Plenário da Assembleia Nacional Constituinte que, todavia, aprovou a redação dos incisos II e VIII do art. 200 da CF.5

Não sem motivos. De fato, o meio ambiente do trabalho há muito vem angariando cada vez maior relevância no seio da sociedade, haja vista a enorme influência que tem exercido perante o nível de qualidade de vida não só dos trabalhadores. Com efeito, hodiernamente, impera mesmo convicção científica de que existe forte ligação entre os riscos do trabalho e o perfil de morbimortalidade que será determinado à população em geral, “como uma consequência dos impactos que a ativi-dade produtiva gera ao ambiente, através da poluição causada pela produção ou pelo consumo dos produtos”6.

Propriamente no âmbito da classe trabalhadora, não se tem mais como negar que o tempo gasto na atividade laborativa ocupa grande parte do tempo útil do trabalhador, de modo que, em regra, a qualidade de vida do obreiro é diretamente proporcional à qualidade do meio ambiente em que presta sua atividade laboral. Deveras, a dinâmica de trabalho cada vez determina mais o estilo de vida do trabalhador, interfere em seu humor e não raro afeta diretamente a própria qualidade das relações interpessoais desenvolvidas no lar7.

Não causa espanto, pois, que, hoje, além da família e da escola, o trabalho também surja como instância social que tem logrado cada vez maior atenção como elemento de influência na saúde física e mental do ser humano8. Afinal, nas bem colocadas palavras de Sebastião Geraldo de Oliveira:

O homem passa a maior parte de sua vida útil no trabalho, exatamente no período da plenitude de suas forças físicas e mentais, daí porque o trabalho, frequentemente, determina o seu estilo de vida, influencia nas condições de saúde, interfere na aparência e apresentação pessoal e até determina, muitas vezes, a forma da morte [...] é impossível alcançar qualidade de vida sem ter qualidade de trabalho, nem se pode atingir meio ambiente equilibrado e sustentável, ignorando o meio ambiente do trabalho.9

A vertiginosa ocorrência de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais, sobretudo afetações osteomusculares e distúrbios de ordem psíquica, bem como a grande quantidade de casos a evidenciar graves exposições químicas afetadoras da qualidade de vida não só de trabalhadores, mas também de toda a comuni-dade circundante a fábricas e lavouras, constituem uma dura demonstração da veracidade dessas afirmações. Trata-se, por certo, do reconhecimento público e explícito de que também não se pode lograr vida saudável se grande parte de nossa trajetória existencial está imersa ou simplesmente se desenvolve vizinha a uma fonte labor-ambiental de influxos poluentes.

Aqui, decididamente, a Carta Magna foi marcantemente sensível inclusive a vívidas diretrizes internacionais que apontavam para o fato de que a garantia de um meio ambiente laboral hígido, seguro e sadio, já àquela época, constituía benfazejo traço de maturidade civilizatória e expressivo fator preventivo de fenômenos poluitivos em geral10.

3. Relevância Jusambiental

Demais disso, insta anotar que, para além de reconhecer, como expressão da soberania popular, a autonomia dogmática do ente meio ambiente do trabalho, nossa Carta Magna, também às escâncaras, pela via da mesma soberana vontade, autenticou a integração jurídica do meio ambiente laboral ao meio ambiente humano, inserindo-o dentre as dimensões passíveis de identificação no plexo ambiental. Noutras palavras, ficou firmado, em seio constitucional pátrio, não apenas a existência jurídica, mas sobretudo a conformação jusambiental da ambiência laboral.

Cuida-se, é verdade, tão só do reconhecimento jurídico de uma realidade que, há muito, expressa-se no plano fenomênico: o meio ambiente do trabalho constitui dimensão intrínseca ao meio ambiente humano. Sem sombra de dúvida, referida admissão constitui fator que potencializa, ainda mais, no aspecto jurídico, a proteção e a promoção da saúde física e mental da classe trabalhadora. Todavia – e este é um ponto crucial para nossas reflexões –, é preciso perceber que tal alocação dogmática tem o propósito de dar braçadas mais largas, amplificando sua eficácia a ponto de gerar benefícios também, ainda que indiretamente, a toda a sociedade e ao meio ambiente em geral.

Ora, a proteção jusambiental, em essência, guarda ligação direta com o duplo e integrativo compromisso de resguardar o

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equilíbrio ecológico e proteger a vida humana11. Nessa visão, o meio ambiente natural, que induz preocupação primária com a esgotabilidade dos componentes naturais, recebe proteção por ser o próprio âmago desse perseguido equilíbrio ecológico. Já o meio ambiente artificial atrai preocupação primária ligada ao resguardo da utilidade de componentes construídos para facilitar a segura e saudável habitação e circulação humanas, estando mais vinculado, portanto, à questão da qualidade da vida humana. O mesmo se pode dizer do meio ambiente cultural, para o qual a preservação da singularidade da exteriorização psicossensorial e social do criativo espírito humano se apresenta como fator decisivo de preocupação.

O meio ambiente laboral, nesse contexto, exsurge como dimensão ambiental deveras diferenciada, na medida em que apta a propiciar, em paralelo, o resguardo do equilíbrio ecológico e a preservação da vida humana. Realmente, a proteção do meio ambiente do trabalho é medida que atinge, a um só tempo, a ambos os citados objetivos, ou seja, tanto serve à proteção do ser humano investido no papel social de trabalhador quanto à proteção da população vizinha e do equilíbrio ecológico que o circunda. É essa visão mais ampla e integrada, a conferir ao tema estatura de questão de saúde pública, como genuíno interesse público primário12, que precisa impregnar a mente do estudioso jusambiental.

Confira-se, ademais, que, ao clarificar que o meio ambiente do trabalho avulta como uma das específicas dimensões do meio ambiente, o legislador constituinte originário cuidou de sanar o incômodo viés restritivo textualmente proclamado no art. 3º, I, da Lei n. 6.938/198113...

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