Meio ambiente do trabalho: descrição jurídico-conceitual

AutorNey Maranhão
Páginas209-222

Page 209

1

Ney Maranhão2

Não são apenas as relações entre nações, povos, religiões, ideologias, mas também as relações entre indivíduos numa mesma família, num mesmo povoado, num mesmo edifício, numa mesma empresa, que são atingidas pelo câncer dos mal-entendidos e das animosidades, maledicências, inimizades – Edgar Morin3

Introdução

O que é meio ambiente do trabalho? Quais seus elementos compositivos? O que efetivamente o caracteriza como tal? Com que espécie de molde conceitual estamos trabalhando quando nos referimos a essa enigmática expressão ambiental? Responder a questionamentos dessa ordem representa tormentoso desafio acadêmico. Em primeiro lugar, em face da enorme variedade de fatores que interagem no interior do meio ambiente laboral, tornando-o uma realidade sobremodo meândrica. Em segundo lugar, porque, malgrado muitos se reportem ao meio ambiente do trabalho, são poucos os estudiosos jurídicos (juslaboralistas e mesmo jusambientalistas) que, de fato, arvoram-se em realizar uma mínima sistematização técnica dos variegados fatores labor-ambientais de risco.

Para se ter uma ligeira noção da perturbadora complexidade do assunto, basta lembrar que, desde a

Page 210

década de 1970, o então cientista soviético A. V. Rosh-chin já ponderava ser o meio ambiente do trabalho a “resultante de uma combinação complexa de fatores tais como o progresso tecnológico, equipamento e processos industriais, a organização do trabalho e o design e o layout das dependências industriais”4. Em tempos mais recentes, destacaríamos a formulação de Raimundo Simão de Melo, para quem o meio ambiente do trabalho, para além do estrito local de trabalho, abrangeria, igualmente, os instrumentos de trabalho, o modo de execução das tarefas, bem assim a própria “maneira como o trabalhador é tratado pelo empregador ou tomador de serviço e pelos próprios colegas de trabalho”5.

Perceba-se que ambas as lições, separadas por quase quatro décadas, trabalham com uma concepção de meio ambiente do trabalho estonteantemente ampla, abarcadora não apenas do local de trabalho, mas também da organização do trabalho implementada, bem assim da própria qualidade das relações interpessoais travadas no contexto laborativo. Cabe, então, a pergunta: estariam tais descrições, de fato, cientificamente escorreitas? A silhueta jurídico-conceitual do meio ambiente laboral comporia mesmo tamanha abrangência técnica e representação fenomênica? A resposta a essas indagações pressupõe prévia compreensão dos elementos constitutivos e dos específicos fatores que dinamicamente permeiam o meio ambiente do trabalho. É o que pretendemos gizar a seguir.

Meio ambiente do trabalho – elementos nucleares: ambiente, técnica e homem

Fática e estaticamente, analisando com vagar a estrutura compositiva basilar do meio ambiente do trabalho, é possível visualizar pelo menos três elementos essenciais: o ambiente, a técnica e o homem, tríade facilmente associada com os clássicos fatores de produção estudados mais de perto pela ciência econômica, concernentes àqueles itens (também chamados de insumos) cruciais para a produção de mercadorias e a geração de serviços, a saber, a terra, o capital e o trabalho.

O ambiente (item correspondente à terra) coincide com o local da prestação dos serviços e diz com a retratação material circundante daquele que presta serviços, englobando itens móveis e/ou imóveis, naturais e/ou construídos pelo homem. Trata-se, em suma, do específico cenário fenomênico diante do qual se executa algum trabalho.

A técnica (item correspondente ao capital), na dicção de Miguel Reale, é “o momento de aplicação, o momento ‘econômico’ da atividade teorética”6. Ou, na proposta um pouco mais concreta de Guilherme Guimarães Feliciano, é a “fórmula pragmática de ação para o alcance de um fim particular preestabelecido”7.

Como a consciência humana continua indevassável, a opção finalística não pode ser combatida enquanto não minimamente objetivada – e uma dessas objetivações se dá com a técnica. Por isso, de regra, a técnica empregada denuncia o fim pretendido. Afinal, “a tecnologia não é boa nem má. É a sua utilização que lhe dá sentido ético”8.

No regime jurídico hodierno, essa inflexão prática deve servir como instrumento ético para o desenvolvimento sustentável. Assim, se a técnica empreendida expressar opções ambientalmente inapropriadas, impõe-se a correção dessa técnica com o propósito de pro-mover a necessária adstrição de seus fins aos ditames da axiologia constitucional (conforme, v. g., art. 170, caput e VI, e art. 225, caput e V).

Mas é mesmo o homem, mais precisamente na qualidade de trabalhador (daí ser item correspondente ao trabalho), a figura central dessa estrutura relacional produtiva. Não sem razão, praticamente qualquer cenário pode se transformar em locus de execução de uma atividade profissional: o oceano para os mergulhadores, o subsolo para os mineiros, as vias públicas para os motoristas de condução pública etc. Da mesma forma, diversos maquinários, inúmeras mobílias e variados recursos técnicos podem até ser inseridos na ambiência laboral. Entretanto, apenas quando presente a figura humana investida no papel social de trabalhador, todo esse cenário, ipso facto, convola-se em meio ambiente de trabalho, ou seja, somente a conjugação dos elementos

Page 211

ambientais e técnicos com a ação humana laborativa é capaz de fazer nascer o meio ambiente do trabalho. Deveras, como afirma com inteira propriedade Guilherme José Purvin de Figueiredo:

O ato de trabalhar é a característica essencial do meio ambiente do trabalho. Um trabalhador da área das Artes Cênicas tem, como seu principal meio ambiente de trabalho, um teatro. Todavia, o prédio onde se acha instalado o teatro, considerado individualmente, não constitui seu meio ambiente de trabalho. Poderá o teatro, nessa hipótese, ser considerado integrante do meio ambiente artificial (urbano ou construído). A partir do momento, porém, em que o trabalhador iniciar suas atividades (ensaios, representação de uma peça teatral), o elemento espacial conjugar-se-á com a atividade laboral, numa dinâmica que denominamos meio ambiente de trabalho. [...] A ideia de meio ambiente de trabalho está centralizada na pessoa do trabalhador. [...] Um seringueiro da Amazônia está, sem sombra de dúvida, imerso naquilo que denominamos de meio ambiente natural. Ora, esse ambiente natural, no momento em que ele exerce sua faixa diária, é também seu ambiente de trabalho.9

Destarte, entre todas as dimensões jusambientais, parece-nos que a mais social e humana é mesmo a dimensão ambiental laboral, porque nela o homem é exposto mais diretamente, em sua saúde, segurança e dignidade. Veja-se que, como anunciaremos mais adiante, a própria qualidade das relações interpessoais travadas no contexto laborativo se afigura como fator de riscos no meio ambiente do trabalho. Com efeito, é no meio ambiente laboral que a integração do homem ao meio ambiente se torna mais visível e destacada, à vista das variadas interações socioprofissionais indiscutivelmente firmadas entre o trabalhador e colegas de trabalho, superiores hierárquicos ou mesmo clientes. Por conta disso, concordamos inteiramente com a reflexão levada a efeito por Raimundo Simão de Melo, in verbis:

[...] enquanto o meio ambiente natural cuida da flora e da fauna; o meio ambiente cultural cuida da cultura e dos costumes do povo; o meio ambiente artificial cuida do espaço construído pelo homem; o meio ambiente do trabalho preocupa-se dire-tamente com a vida do homem que trabalha, do homem que constrói a nação, do homem que é o centro de todas as atrações do universo. Portanto, se é para comparar os aspectos do meio ambiente entre si [...], a importância maior há de ser dada ao meio ambiente do trabalho, porque enquanto nos outros o ser humano é atingido mais indiretamente, neste, o homem é direta e imediatamente afetado pelas consequências danosas.10

Note-se que não apenas por estar inserido, mas por verdadeiramente integrar a estrutura conceitual do meio ambiente, o homem por vezes é afetado não apenas indiretamente, mas também diretamente em sua saúde, segurança ou dignidade. O homem, nesse contexto, é funcionalmente objeto de direito, embora semanticamente remanesça como genuíno sujeito de direito11.

Nessas hipóteses de afetações diretas, o homem (repita-se, como sinônimo de gênero humano) reveste-se do status não de “ser isolado”, mas de “ser sistêmico”, compreendida essa expressão como alusiva à especial condição do ser humano como fator compositivo de uma estrutura sistêmica ambiental. E esse é um fenômeno especialmente marcante no meio ambiente do trabalho, onde, como estamos a acentuar, o homem figura como seu principal “elemento” compositivo.

Isso não quer dizer, por óbvio, que a simples presença do ser humano, de per se, tem o condão de revelar uma condição ambiental. Como pensamos ter deixado claro em linhas transatas, meio ambiente não é o cenário que nos envolve, mas, em verdade, a resultante concreta de uma dinâmica interação dos múltiplos e complexos fatores naturais e sociais que compõem esse cenário. Nesse diapasão, o “ser sistêmico” só se revela quando a dimensão humana se traduz em inarredável fator compositivo de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT