O meio ambiente do trabalho e a tutela dos direitos da personalidade: análise da tragédia de Santa Maria

AutorLuiz Eduardo Gunther - Luiz Gustavo de Andrade
Páginas183-191

Page 183

Luiz Eduardo Gunther1

Luiz Gustavo de Andrade2

A importância do tema: a mídia, os acontecimentos, as repercussões

Quando se estuda o tema do meio ambiente, naturalmente tem-se em mira o valor da vida humana e sua existência digna em um ambiente saudável.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) recebeu quinhentas mil respostas à seguinte pergunta: “o que deve mudar no Brasil para sua vida melhorar de verdade?”3.

Como as indagações foram abertas, sem temas predefinidos, a maioria das respostas mostrou o que desejam, realmente, os brasileiros, acima de tudo: “respeito, justiça, honestidade, responsabilidade, solidariedade, ética”4.

Como expressado por Marina Silva, “o estudo encontrou a alma dos brasileiros clamando por valores”5.

Do ponto de vista ético, “os valores são os fundamentos da moral, das normas e regras que prescrevem a conduta correta”6.

As eras da humanidade conheceram variadas escalas de valores, ora predominando umas, ora outras. Friedrich Nietzsche (1844-1900) combateu, de forma incisiva, a escala de valores mercantilista, “na qual predominam os valores utilitários, sem, no entanto, considerar os religiosos os mais altos, e, sim, os vitais, e os éticos”7.

A pesquisa mencionada, portanto, mostra de forma absolutamente clara que “as pessoas não estão preterindo a saúde, a escola, a casa, o trabalho, a segurança”8. Não! O que dizem, de forma objetiva, é que os valores são a base para a solução dos problemas, vale

Page 184

dizer, “eles antecedem e transcendem as demandas materiais”9.

A grande questão sobre o meio ambiente centra-se em saber de quem é a responsabilidade por sua preservação. Frequentemente veem-se discussões entre Estados e Municípios sobre quem é o responsável pela poluição e pelo lixo, como exemplos. A imprensa noticiou que o Município de São Paulo e entidades ambientalistas representaram contra o governo brasileiro na Organização dos Estados Americanos (OEA) por violação dos pactos internacionais e desrespeito aos direitos humanos, pois este teria postergado “a distribuição de diesel meio ambiente menos poluente para abastecer a frota brasileira, prejudicando a saúde dos moradores das grandes cidades”10.

Pesquisa científica elaborada por doutoranda do Laboratório de Poluição Atmosférica da Faculdade de Medicina da USP revelou que, no Parque Ibirapuera, em São Paulo, as cascas das 27 árvores examinadas (das mais de 15 mil existentes) revelaram alta concentração de chumbo (um eucalipto, por exemplo, apresentou concentração de 13,5 mg/kg desse metal). Embora o Brasil tenha proibido a utilização do chumbo como aditivo para a gasolina, com total eliminação em 1992, o metal ainda está presente na gasolina da aviação11. Não há dúvida sobre o efeito maléfico do chumbo. Tanto assim que a Agência Nacional do Petróleo (ANP), responsável pelas especificações de combustíveis no país, alerta em seu site que o chumbo é um metal pesado que, além de tóxico e cancerígeno, “desativa os sistemas de catalisadores de escapamento dos automóveis, responsáveis pela redução das emissões dos poluentes”12.

Quando se estuda de forma específica o meio ambiente laboral e a saúde do trabalhador, alguns números são impressionantes. Segundo estimativas da

Organização Internacional do Trabalho (OIT), de um total de 2,34 milhões de mortes a cada ano, 321 mil se devem a acidentes. As restantes 2,02 milhões de mortes são causadas por diversos tipos de enfermidades relacionadas com o trabalho, o que equivale a uma média diária de mais de 5.500 mortes13.

Os casos de lesão por esforço repetitivo (LER) passaram de 20 mil em 2006 para 117,5 mil em 2008, isto é, um aumento de 586%. A pressão por metas e as condições inadequadas são os principais motivadores da doença14.

A exemplificação acima parece contundente no sentido de mostrar como o ambiente do trabalho é essencial no direcionamento da pesquisa relacionada à tutela dos direitos de personalidade, especialmente no âmbito da prevenção (antes da reparação) na órbita da atividade empresarial.

Feitas as considerações anteriores, passa-se a abordar mais um exemplo de violação de inúmeros direitos fundamentais, extraído das manchetes da mídia, focando-se na inegável ofensa ao direito ao meio ambiente do trabalho: o caso de Santa Maria.

A tragédia de santa maria

O início do ano de 2013 foi marcado por uma das maiores tragédias da história brasileira. A “tragédia de Santa Maria”, como ficou conhecida, em alusão à ci-dade de Santa Maria (RS), onde aconteceu, abalou o Brasil. Ocorrido na madrugada do dia 27 de janeiro, na boate Kiss, um incêndio se alastrou atingindo materiais que serviam como isolantes acústicos, porém altamente inflamáveis, matando 242 pessoas e ferindo 63615.

O episódio ganhou as manchetes dos noticiários nacionais e internacionais, causando perplexidade a

Page 185

todos. Os meios de comunicação dedicaram-se a repercutir os aspectos criminais, principalmente, do acontecido. Quando as investigações policiais se encerraram, a Revista Veja não tardou a destacar que, segundo o Ministério Público do Rio Grande do Sul, “os donos da boate e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira” seriam denunciados “por homicídio com dolo eventual”, que ocorre “quando não há intenção de matar, mas o acusado assume tal risco”16.

Contudo, um aspecto relevante do caso, não abordado com a devida ênfase pela mídia, diz respeito à quantidade de vítimas que eram empregados da boate. Não há dúvida que o estabelecimento não apresentava segurança para seus consumidores, pois desrespeitava as condições mínimas exigidas para funcionamento. Dentre as vítimas fatais, quase 10% eram empregados da Boate.

As investigações policiais concluíram que “Havia superlotação no dia da tragédia, com no mínimo 864 pessoas”. No que diz respeito à segurança e salubridade do ambiente, “a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular; as grades de contenção (guarda-corpos) obstruíram a saída de vítimas; a casa noturna tinha apenas uma porta de entrada e saída”. Além disso, “não havia rotas adequadas e sinalizadas de saída em casos de emergência; as portas tinham menos unidades de passagem do que o necessário; não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas”17. As autoridades policiais constataram, ainda, que os empregados foram os últimos a buscar a saída ou tentar se salvar, em virtude do local em que se encontravam laborando18.

Não por outro motivo, a Procuradoria Regional do Trabalho no Rio Grande do Sul instaurou procedimento investigativo, com intuito de averiguar a violação às normas atinentes à proteção contra incêndios, inerentes ao meio ambiente do trabalho.

A devida proteção ao meio ambiente do trabalho guarda relação direta com a concretização dos direitos da personalidade do empregado. Eis o tema dos tópicos a seguir.

Como se pode interpretar o direito: a influência do fenômeno da globalização

No Estado Democrático de Direito, a adequada justificação da decisão constitui-se em um direito fundamental. Depois do lançamento da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, há mais de 50 anos, o livro de Direito mais importante que se imprimiu na Alemanha foi a Teoria Estruturante do Direito, de Friedrich Müller19.

Kelsen apenas examina a juridicidade da norma (na concepção da Teoria Pura). Müller, ao revés, analisa integralmente o arcabouço normativo (plano literário, linguístico, plano material, plano conjuntural), em cada caso, per se, e cria a norma de decisão, ou seja, o ato decisório, realizador do direito. A interpretação do direito é considerada como um processo intelectivo por meio do qual, partindo de fórmulas linguísticas contidas nos atos normativos, alcança-se a determinação do seu conteúdo normativo: caminha-se dos significantes (os enunciados) aos significados20.

O texto, preceito, enunciado normativo, é alográfico. Não se completa no sentido nele impresso pelo legislador. A sua “completude” (do texto) somente é realizada quando o sentido por ele expressado é produzido, como nova forma de expressão, pelo intérprete.

A interpretação do Direito opera a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular: isto é, opera a sua inserção na vida21.

Segundo Thomas L. Friedman22, a globalização atravessou três grandes eras. A primeira, de 1492 até 1880 – a globalização 1.0, na qual se viu a redução do

Page 186

mundo de grande para médio. Os países e governos interligaram o mundo. Como o meu país se insere na concorrência e nas oportunidades globais?

A segunda, de 1800 até 2000 – a globalização 2.0 diminuiu o mundo do tamanho médio para o pequeno. Os principais agentes de mudança foram as empresas multinacionais, que se expandiram em busca de mercados e mão de obra. Como a minha empresa se insere na economia global?

A terceira, a partir de 2000 – a globalização 3.0, está encolhendo o tamanho do mundo de pequeno para minúsculo e aplainando o globo terrestre. A força dinâmica é a descoberta da capacidade dos indivíduos de colaborarem e concorrerem no âmbito mundial. A pergunta a ser feita nesse período é a seguinte: como eu (cada pessoa) me insiro na concorrência global e nas oportunidades que surgem a cada dia e como é que eu (cada pessoa) posso, por minha própria conta, colaborar com outras pessoas, em âmbito global.

Governar a globalização; civilizar a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT