Os Medievais

AutorMônica Sette Lopes
Páginas50-73
Os Medievais
Quando os olhos do estudioso se voltam para o passado e
alcançam a Idade Média, invadem a zona nevoenta da restauração
de vestígios.
No direito, os restos que se recuperaram são os do direito
romano, decifrado a partir do Código de Justiniano, cujos diversos
livros se dispersaram num ciclo em que prevaleceu a força regula-
dora plural do direito das comunidades, do direito canônico, de um
direito real descontínuo e de um direito romano vulgar transmitido
oralmente77. O pluralismo normativo abrangia também, portanto, o
direito romano erudito, guardado pelos poucos que conseguiam de-
cifrá-lo pela leitura e, principalmente, pela Igreja.
Na música, o processo de restauração é ainda mais obscu-
ro. Faltam registros seguros da música do passado porque não havia
um meio de expressão uniforme dos modos como os sons se orga-
nizavam. Não havia uma linguagem única que os zesse percorrer o
tempo e ser compreendidos em qualquer época.
Aos ouvidos de hoje, o pluralismo jurídico esparso e sem
uma marcação de memória conável pertence a um outro mundo
que se imiscui na versão plurívoca das interpretações e da restaura-
ção.
O pluralismo, porém, não pode ser compreendido apenas
com a indicação de existência de fontes variadas para a denição-so-
lução do conito. Mais do que isto é relevante pontuar que o plural
estava introjetado no cotidiano e que o direito se formava pela ab-
sorção de uma prática costumeira muito variada.
É assim que se deve entender a perspectiva de Grossi:
“na civilização medieval a ordem jurídica é, salvadas algu-
mas delicadas zonas conexas ao governo da polis, uma rea-
lidade ôntica, isto é, escrita na natureza das coisas, realidade
essencialmente radical, já que brota pujante nas raízes da
sociedade e, por isto, se identica com o costume, com os
fatos típicos que conferem uma sionomia peculiar a uma
77 Cf. GILISSEN, 1995, p. 169-70, WIEACKER, 1980, p. 21-23, GAUDEMET, 2001.
civilização histórica; [...] realidade que nasce, vive, pros-
pera, se transforma fora da inuência do poder político, o
qual, graças à sua incompletude, não tem excessivas preten-
sões, respeita o pluralismo jurídico, respeita o consórcio de
forças que o provoca78.
A viagem até o mundo em que o ser humano ocidental
mantinha este envolvimento com o direito é feita na penumbra, por
um caminho marginal e sem marcação clara de espaços.
Do passado caram vestígios recuperados a partir de sua
desintegração e rearranjados para narrar essa história: que instru-
mentos se tocavam, que sons se ouviam, que músicas se compu-
nham, como se resolviam os conitos, como se organizavam os gru-
pos políticos na comunidade, como se dividia o poder à vista dos
interesses postos em jogo79.
Pode haver uma certa tendência a querer uniformizar ou
particularizar o conteúdo do direito assim como o sentido musical
que então prevalecia.
O pluralismo e a descontinuidade das fontes de expressão
normativa e musical não signicam que não tenha havido um movi-
mento no sentido do estabelecimento de padrões que se expusessem
como uma única voz. As tentativas de uniformização manifestaram-
-se, por exemplo, no período em que Carlos Magno foi rei dos fran-
cos, isto é, de 771 a 814.
Ele é considerado por alguns como um dos primeiros artí-
ces do processo de restauração do Direito Romano80, o que é com-
patível com uma concepção maior de restauração do próprio Impé-
rio Romano. Mas a busca era não apenas de um direito comum como
também de um canto comum. Na raiz das injunções, estava a disputa
de poder entre a Igreja e uma centelha de organização política cen-
tralizada que era o Império Carolíngio. Seriam necessárias regras
comuns, língua comum e uma música que, na liturgia, funcionasse
78 GROSSI, 2003, p. 29. Cf. FAVIER, 2004, p. 582 et seq.
79 Cf. o interessante CLANCHY, Michael. Lei e amor na Idade Média. In:
HESPANHA, 1993-a, p. 139-66.
80 HESPANHA, 1997, p. 79, WIEACKER, 1980, p. 29-30, GILISSEN, 1995, p. 166 e
p. 179-81.

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