A mediação e os conflitos de consumo

AutorGuilherme M. Martins
CargoPromotor de Justiça titular da 3ª Promotoria Cível da Capital ? Rio de Janeiro
Páginas197-216

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EXCERTOS

"A mediação é mais difundida nos casos de conflitos envolvendo pessoas que têm interesses ligados a relações continuadas, como é o caso das relações de vizinhança, família ou emprego, casos em que muito mais importante do que a indenização de um prejuízo é a restauração da convivência entre os envolvidos"

"O direito privado passa a conviver a valorizar as especificidades dos grupos vulneráveis, desenvolvendo instrumentos para compensar (não excluir, vitimizar ou acabar) com as diferenças, pois estas identificam os indivíduos da nossa sociedade"

"A segunda característica da mediação, indispensável em matéria de relações de consumo, é a anuência de todos os envolvidos, vítimas e responsáveis"

"A mediação tem sido aplicada sobretudo aos grandes acidentes de consumo, que envolvem interesses difusos e direitos coletivos ou individuais homogêneos (LEI 8078/90, art. 81, I a III), embora sua aplicabilidade, no BRASIL, ainda seja recente, em matéria de DIREITO do CONSUMIDOR"

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1. Introdução A evolução da mediação no Brasil

No brasil, a partir dos anos 1990, começou a haver um maior interesse pelo instituto da mediação, sobretudo por influência da legislação argentina editada em 19951. No novo código de PROCESSO civil, oriundo do PL 166/2010 e já aprovado pelo congresso nacional (lei 13.105, de 16 de março de 2015), há referência aos institutos da conciliação e mediação, nos artigos 165 a 1752, 3.

Coroando a evolução do tema, entrou em vigor a lei 13.140, de 26 de junho de 2015 (lei da mediação), que dispõe sobre a mediação como meio de composição de conflitos entre particulares e no âmbito da administração pública, com a seguinte definição, no seu artigo 1º:

Parágrafo único. Considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial e sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia.

Não obstante a recente aprovação do código de PROCESSO civil e da lei 13.140/2015, deve ser dito que a mediação está largamente difundida no brasil e já é exercida inclusive dentro dos órgãos do PodeR JUDICIÁRIO, na medida em que se funda na livre manifestação de vontade das partes, e na escolha por um instrumento mais profundo de solução do conflito4.

Os métodos alternativos de solução de conflitos constituem uma área na qual a FUNDAÇÃO FORD já em 1978 promovia programa pioneiro, que desencadeou ampla procura daquilo a que se chamou "novos enfoques da solução de conflitos", com particular atenção para "conflitos complexos sobre políticas públicas", "conflitos regulatórios", "conflitos oriundos de programas de bem-estar social", tudo com a finalidade de "encontrar caminhos para tratar de conflitos fora do sistema formal"5.

No direito comunitário europeu, já existe um grande avanço na matéria, a partir da diretiva 2013/11 do PARLAMENTO europeu e do conselho, de 21 de maio de 2013, relativa à mediação alternativa de litígios em matéria de consumo6, que possui inclusive um regulamento relativo aos meios alternativos de solução de conflito online em se tratando de relações de consumo.

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Na mediação7, não se busca uma decisão que ponha um ponto final na controvérsia, até mesmo porque o mediador não tem poder decisório, o que, desde logo, o difere do árbitro8. O objetivo é a real pacificação do conflito por meio de um mecanismo de diálogo, compreensão e ampliação da cognição dos interessados sobre os fatos que os levaram àquela disputa9.

Baseia-se tal técnica de solução de conflitos na autocomposição, lastreada pelo pilar da autonomia da vontade das partes10. Trata-se da interferência - em uma negociação ou em um conflito - de um terceiro com poder de decisão limitado ou não autoritário, que ajudará as partes envolvidas a chegarem voluntariamente a um acordo, mutuamente aceitável com relação às questões de disputa. A função fundamental do mediador, para JOSÉ luis bolzan de moraes e FABIANA marion SPENGLER, é (re)estabelecer a comunicação11.

O renascer dos métodos alternativos de solução de conflitos devese, em grande parte, à crise atravessada pela JUSTIÇA, devida sobretudo ao elevado grau de litigiosidade próprio da sociedade moderna, o qual levou à morosidade, alto custo e burocratização na gestão dos processos12.

Antes do novo código de PROCESSO civil e da lei de mediação, a principal referência para a mediação nos tribunais brasileiros era a resolução 125, de 29 de novembro de 2010, do conselho nacional de JUSTIÇA, cujo artigo 1º estabelece que "fica instituída a POLÍTICA JUDICIÁRIA nacional de tratamento dos conflitos de interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade".

Seguindo a mesma tendência do conselho nacional de JUSTIÇA, o conselho nacional do ministério PÚBLICO editou a resolução 118/1413, que dispõe sobre a política nacional de incentivo à autocomposição no âmbito do ministério PÚBLICO.

Por consistir a mediação um mecanismo consensual, as partes apropriam-se do poder de gerir seus conflitos, diferentemente da jurisdição estatal tradicional, na qual este poder é delegado aos profissionais do direito, em especial os juízes14.

Distingue-se da conciliação, termo proveniente do verbo latino conciliare, que é reunir, compor e ajustar os ânimos divergentes. A

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mediação é mais ritualística, demorada, enquanto a conciliação é mais ágil, informal e rápida. O conciliador faz propostas de soluções, intervindo diretamente para a obtenção do acordo, diversamente do mediador.

Ambas, mediação e conciliação, mais do que um meio de acesso à justiça fortalecedor da participação social do cidadão, são políticas públicas15que vêm ganhando destaque e fomento do ministério da JUSTIÇA, da SECRETARIA de reforma do JUDICIÁRIO e do conselho nacional de JUSTIÇA, visto que comprovada empiricamente sua eficiência no tratamento de conflitos16.

A mediação é mais difundida nos casos de conflitos envolvendo pessoas que têm interesses ligados a relações continuadas17, como é o caso das relações de vizinhança, família ou emprego, casos em que muito mais importante do que a indenização de um prejuízo é a restauração da convivência entre os envolvidos18.

Uma característica marcada pela doutrina é o equilíbrio das relações entre os envolvidos, sendo "fundamental que a todas as partes seja conferida a oportunidade de se manifestar e garantida a compreensão das ações que estão sendo desenvolvidas"19. Não é por outro motivo que a lei de mediação, no seu art. 2º, ii, estabelece como um de seus princípios a isonomia entre as partes20.

As relações travadas no mundo pós-moderno demandam o desenvolvimento de formas efetivas e adequadas de pacificação social, a fim de reparar e prevenir a ocorrência de danos. SURGEM novos danos, não só do ponto de vista quantitativo como também qualitativo, decorrentes de fatores como a degradação do meio ambiente, as biotecnologias, a internet e os respectivos meios de comunicação, as novas doenças, o que fez com que houvesse um aumento no número de demandas perante o estado-juiz, o qual, praticamente, não acompanhou essa transformação. Daí a importância dos meios não adversariais com a participação da comunidade, como a mediação21.

Não obstante serem os conflitos de consumo, por sua natureza, massificados, impessoalizados e marcados pela vulnerabilidade da

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parte mais frágil (art. 4º, i, lei 8.078/90), ao contrário das relações de emprego, família e vizinhança, onde há um maior equilíbrio entre as partes, o presente e o futuro sinalizam no sentido do aumento do uso da mediação na resolução de tais controvérsias.

O direito privado passa a conviver com e a valorizar as especificidades dos grupos vulneráveis, desenvolvendo instrumentos para compensar (não excluir, vitimizar ou acabar) as diferenças, pois estas identificam os indivíduos da nossa sociedade. A partir dessas assertivas, encontramos a instrumentalidade maior desse paradigma, que não se contenta apenas em endereçar direitos aos vulneráveis, mas impõe que o estado (este no exercício de qualquer os poderes desempenhados na república) e os particulares concretizem formas de harmonização dessas diferenças.

2. O direito do consumidor como direito fundamental e a viabilidade da aplicação das técnicas alternativas de solução de conflitos

A defesa do consumidor é consagrada nos artigos 5º, XXXII, e 170, v, ambos da constituição da república, cabendo àquelas duas normas, na visão de FÁBIO KONDER comparato, definir o lugar do consumidor no sistema constitucional brasileiro22.

Na sistemática constitucional, deve ser a defesa do consumidor, acima de tudo, coligada à cláusula geral de tutela da personalidade, a partir do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, iii), considerado ainda o objetivo da república no sentido da erradicação da pobreza e marginalização, reduzindo-se as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, iii)23.

Entre os princípios da POLÍTICA nacional das relações de consumo, prevê o art. 4º, v, da lei 8.078/90 o "incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo".

Como meio de efetivação do comando do art. 4º, v, supramencionado, e com base na necessidade de proporcionar alternativas menos custosas e mais céleres para resolver os litígios,

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surge a técnica do design de sistemas de disputas, envolvendo métodos sistemáticos para solucionar conflitos complexos ou recorrentes. Trata-se de um sistema que envolve procedimentos elaborados sob medida para a resolução de controvérsias, com o objetivo de...

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