Os mecanismos alternativos de resolução de litígios de consumo: imperativo europeu, seus reflexos em Portugal

AutorMário Frota
Páginas250-319

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Ver Nota1

Excertos

“Os meios, vias ou procedimentos alternativos estiveram sempre em mira como forma de os consumidores lesados acederem com presteza a um sistema susceptível de lhes dispensar justiça de modo expedito e firme”

“Recurso aos meios alternativos de resolução de litígios de consumo constitui imperativo que quer a União Europeia, quer os Estados-membros, na sua esteira, sufragam indeclinavelmente”

“De assinalar que os julgados de paz, na sua concepção hodierna, se decalcaram do modelo dos juizados especiais vigente no Brasil, conquanto se trate, entre nós, ao invés do que ocorre na Pátria de Cabral, de órgãos extrajudiciais de administração da justiça”

“A mediação pode proporcionar uma solução extrajudicial rápida e pouco onerosa para litígios em matéria civil e comercial através de procedimentos adaptados às necessidades das partes”

“A conciliação aparta-se da transação, já que a conciliação é um negócio jurídico-processual trilateral (em que o próprio julgador é parte), ao passo que a transação é um negócio jurídico-material (inter partes, entre os pleiteantes por si sós considerados)”

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I A desjudicialização
1. Desconfianças ante as vias convencionais de administração da justiça

A desjudicialização das lides de consumo: os meios alternativos de resolução de litígios

C omo o prevenimos noutro trabalho2, regra de ouro dos sucessivos planos de ação editados na União Europeia é a de se subtrair a resolução dos litígios aos convencionais órgãos de judicatura de molde a imprimir à resolução das controvérsias celeridade, em condições de graciosidade ou, ao menos, de não onerosidade. Em todos os domínios recobertos, aliás, pela vasta temática do consumo, tanto no que tange aos conflitos suscitados no âmbito dos mais contratos disciplinados a seu nível, como no quadro do crédito ao consumidor (crédito pessoal, crédito ao consumo), como no crédito hipotecário.

Refira-se que já no plano preliminar esboçado em 1975, como no ponto seguinte se sublinha, os meios alternativos se insinuam, numa alusão à arbitragem dos litígios suscitados neste domínio. E, conquanto em determinados diplomas haja alusão a órgãos jurisdicionais, avulta sempre a característica do empenho em que os litígios se dirimam por vias extrajudiciais3.

No exemplo a que ora se recorre, o da diretiva atinente à “proteção do consumidor relativamente a determinados aspectos dos contratos de utilização periódica de bens, de aquisição de produtos de férias de longa duração, de revenda e de troca (vulgo, do timeshare) não se aparta evidentemente a hipótese do recurso a órgãos jurisdicionais e até administrativos, como resulta expressamente do seu artigo 13, como segue:

Ações de caráter judicial e administrativo

  1. Os Estados-membros devem assegurar, no interesse dos consumidores, a existência de meios adequados e eficazes para garantir que os profissionais cumpram o disposto na presente diretiva.

  2. Os meios referidos no n. 1 incluem disposições que con firam a um ou mais dos seguintes organismos, determinados pela lei

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nacional, o direito de intentar, nos termos dessa lei, perante os tribunais ou órgãos administrativos competentes, ações tendentes a garantir a aplicação das disposições nacionais aprovadas em execução da presente diretiva:

  1. Organismos e autoridades públicos ou seus representantes;

  2. Organizações de consumidores com um interesse legítimo na proteção dos consumidores;

  3. Organizações profissionais com um interesse legítimo em intentar tais ações.

De qualquer sorte, a tónica é sistematicamente colocada nos denominados meios alternativos (tão adequados quanto os mais) que perseguem de modo consequente o escopo da celeridade, segurança, eficácia e não onerosidade, que nos mais parece não se verificarem, em geral.

Realce-se, pois, que os meios, vias ou procedimentos alternativos estiveram sempre em mira como forma de os consumidores lesados acederem com presteza a um sistema susceptível de lhes dispensar justiça de modo expedito e firme.

2. A obsessão pelos meios de resolução alternativa de litígios de consumo

A Comunidade Económica Europeia, no programa preliminar de ação editado a 14 de abril de 1975, em tema de “conselhos, assistência e reparação de prejuízos”, previa no tocante a ações um sem-número de aspectos, a saber:

– levantamento dos sistemas de conselho e assistência dispensados nos Estados-membros;

– estudo dos sistemas de reclamação, de arbitragem e de composição amigável de conflitos;

– detecção das vias de acesso à administração de justiça, tipos de ação, modalidades de recursos – em que se inserem as ações de que poderão lançar mão as associações de consumidores;

– outro tanto no que se prende com os sistemas de países terceiros; – oportunidade de um processo de informações recíprocas no que tange à sequência de pretensões deduzidas pelos consumidores

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a propósito de produtos oferecidos em grande escala ou em um semnúmero de Estados-membros4.

O segundo programa – a que Resolução do Conselho das Comunidades Europeias de 19 de maio de 1981 confere forma – insiste na tónica com um leque de sugestões e propostas, como segue no que ora importa:

– necessidade de instituir organismos de conciliação, seja a título preventivo para fazer cessar de forma amigável certas práticas condenáveis, seja para resolver de comum acordo os litígios que surjam entre consumidores e comerciantes ou prestadores de serviços;

– criação de organismos de arbitragem;

– simplificação dos processos judiciais para litígios de valor diminuto;

– defesa dos consumidores a cargo das centrais de consumidores, dos serviços públicos ou de órgãos do tipo do ombudsman.

Lançamento, por outro lado, de experiências que a Comissão incentivará, apoiando, tanto no plano nacional, como regional ou local, no quadro do acesso dos consumidores aos tribunais e a outras estruturas5. O Novo Impulso, a 23 de julho de 1985, acolhe, na sequência do Colóquio de Gand, promovido em 1982, um célebre memorandum sob a epígrafe “O Acesso dos Consumidores à Justiça”, transmitido ao Conselho em 4 de janeiro de 1985 e completado em 7 de maio de 1987 pela “Comunicação Complementar da Comissão sobre o Acesso dos Consumidores à Justiça”6. Foi apenas em 1993 que a problemática se relançou, no seio da Comunidade, com a edição do “Livro Verde sobre o Acesso dos Consumidores à Justiça e a Resolução dos litígios de consumo no mercado único”.

Facilitar o acesso à justiça e a resolução dos litígios

– O relatório Sutherland sublinha a importância do acesso à justiça para um funcionamento do mercado interno que responda às expectativas dos consumidores e dos produtores. O relatório nota que as diferenças de cultura jurídica entre os Estados-membros tornam difícil antever uma harmonização dos processos civis nacionais, mas que os operadores terão uma necessidade cada vez maior de recorrer à justiça nos outros Estados-membros. Nota

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ainda o relatório o aumento dos litígios de caráter transfronteiriço e em que estão implicados os consumidores. O relatório recomenda um exame das condições do acesso à justiça na Comunidade e sugere soluções para assegurar a eficácia da proteção dos direitos dos consumidores, com a instituição de mecanismos de conciliação extrajudiciária e com acesso à justiça em benefício das associações de consumidores.

– A Comissão explorará as pistas sugeridas. Em 1993, para este efeito, será elaborado um livro verde sobre o acesso dos consumidores à justiça, que considerará igualmente as modalidades possíveis de uma assistência jurídica aos consumidores comunitários, tendo em conta a experiência adquirida por intermédio de diferentes projectos-piloto iniciados e sustentados pela Comissão em diversos Estados-membros.

– Por outro lado, os atos de consumo podem dar origem a litígios, para cuja resolução não parece adequado o recurso à via judicial, em especial quando as quantias em causa são de escasso montante. Nestes casos, a inadequação dos meios judiciais deixa o consumidor desarmado face a comportamentos que, no entanto, lhe causam prejuízos. Quando dizem respeito a litígios transfronteiriços, estas dificuldades afetam a confiança do consumidor no mercado único.

– Convém, pois, que nos orientemos para formas simplificadas de resolução dos litígios. Foram já feitas experiências neste sentido e novas iniciativas serão tomadas com o concurso de elementos de ligação nacionais, em especial no respeitante a resolução dos litígios transfronteiriços.

O Plano Trienal de Ação 1996/98 é, ao que se nos afigura, omisso a tal propósito decerto porque o debate acerca do Livro Verde prosseguia seus termos.

3. Imposições da União europeia aos estados-membros

A União Europeia passou a inserir em instrumentos normativos, mormente em diretivas, regras em ordem a que os litígios emergentes das relações jurídicas de que se trata se dirimam através de procedimentos extrajudiciais. Como, de resto, se registou precedentemente.

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A título de exemplo, cite-se a Diretiva do Crédito ao Consumo (2008/48/EU), datada de 23 de abril de 2008 que, no seu artigo 24, sob a...

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