Mecanismos de Adequada Resolução do Conflito Previdenciário

AutorMarco Aurélio Serau Junior
Ocupação do AutorMestre e Doutor em Direitos Humanos (Universidade de São Paulo). Especialista em Direito Constitucional (Escola Superior de Direito Constitucional) e Direitos Humanos (Universidade de São Paulo). Professor universitário e de diversos cursos de pós-graduação, em todo o Brasil
Páginas126-155

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O último capítulo, após analisar criticamente o panorama administrativo e judicial de resolução do conflito previdenciário, propõe certas soluções a fim de adequar o tratamento dado a esta espécie conflitiva, sob a perspectiva que melhor atenda a concepção dos direitos previdenciarios como direitos fundamentais.

4.1. Abordagem inicial da resolução judicial do conflito previdenciário

A resposta judicial não se resume à alegação comum de que os segurados transferem ao Poder Judiciário trabalho que deva ser realizado primariamente pelo INSS (MANCUSO, 2012: 168-169).

Pesquisa qualitativa efetuada pelo Conselho da Justiça Federal revelou que a percepção de juizes e servidores da Justiça Federal é de que fazem o serviço do INSS - e o aprimora-mento da gestão naquele órgão evitaria que muitos casos chegassem ao Poder Judiciário (CJF, 2012: 94-95).

Também é recorrente a manifestação de que a litigiosidade na área previdenciária, anteriormente contida, transforma-se em uma litigiosidade exacerbada, uma verdadeira "euforia do acesso à justiça" (MAIA, 2013: 58-61, 66). Refutamos também que essa questão fique restrita à existência de um ativismo judicial, compreendido sob um modo pejorativo, ou mesmo de aplicação de um Direito Alternativo nesse campo.

Há uma ampla agenda previdenciária, que denominamos anteriormente de pauta de legalidade, cuja apreciação não prescinde da atuação judicial (cortes arbitrários de benefícios previdenciarios, negativa de atendimento em agências do INSS etc).

As dificuldades do Poder Judiciário, nesse tópico, residem na já apontada crise de efetivi-dade da prestação jurisdicional: o enorme déficit no tempo de entrega da prestação jurisdicional derivado do ajuizamento de milhões de demandas, em âmbito nacional, a respeito de matéria previdenciária. As soluções para esse tipo de limitação passam por reformas processuais, melhoria do sistema de gestão processual e judiciária e melhor aparelhamento material e humano do Poder Judiciário, questões que não serão aprofundadas aqui, como já havíamos assinalado.

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Em relação à pauta que batizamos interpretativa, surgem maiores dificuldades e limitações ao Poder Judiciário177.

Os problemas decorrem do anacronismo que caracteriza a função judiciária e seu modo de funcionamento: um órgão que faz parte da estrutura de poder da sociedade, mas cujo modo de atuação é voltado à resolução de contendas individuais, revelando-se pouco apto à pacificação de temas de repercussão e que notadamente ultrapassem as fronteiras jurídicas (MANCUSO, 2011: 255-258, 270). Principalmente porque isso envolve outras instâncias e outros subsistemas sociais, especialmente a Política (escolhas legislativas a respeito de políticas públicas previdenciárias; questionamento a respeito da forma de condução da administração previdenciária pelo órgão do Poder Executivo) e a Economia (existência de orçamento suficiente à implementação e manutenção de políticas públicas previdenciárias).

As complexas relações entre os subsistemas sociais Direito e Política ou Direito e Economia têm como ponto privilegiado de análise os sofisticados arranjos que Niklas Luhmann denomina de acoplamento estrutural, irritações, prestações para outros sistemas e interpenetrações. Tais arranjos devem ser compreendidos em uma sociedade complexa e assíncrona, o que significa que cada subsistema social possui sua velocidade própria, seu tempo próprio relacionado a sua específica função.

Os diversos sistemas sociais (político, jurídico, económico, religioso etc.) são autorreferenciais e autopoiéticos. São independentes em relação aos outros sistemas, que lhes figuram como se ambiente fossem. Mas a isonomia dos sistemas parciais não equivale a isolamento, ou independência total, mas simplesmente ao controle sobre sua lógica interna e sobre a lógica de suas dependências e independências. Entretanto, essa independência entre sistemas não equivale a isolamento, pois também ocorre penetração e interpenetração. A primeira corresponde a quando um sistema põe sua complexidade a disposição de outro; a segunda situação ocorre quando essa disponibilidade dos sistemas é mútua (VALLESPÍN, 2007: 15-18).

A implementação de programas de expansão da cidadania, como é o caso das políticas públicas previdenciárias, não é tarefa simples e implica identificar relações, interpenetrações, prestações e acoplamentos entre os diferentes sistemas de funções da sociedade moderna, com reflexos em inúmeras organizações formais e uma grande pluralidade de instâncias, sendo muito difícil que todo esse arranjo não produza bloqueios recíprocos, inconsistências e sentidos contraditórios (CAMPILONGO, 2012: 55).

Esse é o caso das pretensões previdenciárias, que envolvem complexas estruturas de custeio, arrecadação de contribuições previdenciárias e regras orçamentarias, assim como a definição de planos de benefícios também bastante intrincados, elaborados com a participação de Conselhos multilaterais pouco democráticos, a partir de legislação contraditória, muitas vezes (re)definida por regulamentação infralegal e, na prática, estipulada pelos últimos operadores da esfera previdenciária, os funcionários das agências do INSS178.

Os conflitos sobre o direito válido, além das relações entre sistema jurídico e outros sistemas funcionais, pode induzir o Direito a tomar o lugar dos demais sistemas, como a política ou a econo-

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mia; de outra parte, também pode ocorrer que o sistema jurídico simplesmente reaja juridicamente às disfunções desses outros sistemas. De toda sorte, ambas as possibilidades são complexas e difíceis, indicando a percepção de autolimitação do sistema jurídico (CAMPILONGO, 2012: 93-94).

Quanto à irritação entre Direito Previdenciário e Economia, na hipótese de existência de orçamento suficiente ao atendimento das demandas previdenciárias que a sociedade leva ao Judiciário (argumento em que acreditamos, e sobre o qual não há espaço para desenvolvimento aqui, veja-se: CALCIOLARI, 2009; SERAU JR., 2012; SAVARIS, 2011), há que se lidar, por outro lado, com a alta complexidade das regras orçamentarias pertinentes à igualmente complexa estrutura da Seguridade Social/aparato administrativo do INSS.

O Poder Judiciário, assim, não parece ser a esfera mais adequada para o exame de constatação da existência ou inviabilidade de equilíbrio financeiro-atuarial nas questões que se lhe apresentem, mesmo no âmbito qualificado do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça. Constata Savaris (2011: 198-209) que o sistema jurídico e, em particular a atuação judicial, não possuem capacidade operacional estruturada com orientação para fins e efeitos, inclusive económicos (racionalidade finalística).

Adotada ou não a perspectiva luhmanniana, observam-se dificuldades do Poder Judiciário em termos de capacidade institucional para lidar com os reflexos e repercussões económicas e políticas de suas decisões, especialmente diante de fatores como morosidade, imprevisibilidade e onerosi-dade (MANCUSO, 2011:341-342). Muitas vezes, por um aspecto unicamente técnico-processual, a adjudicação não é a melhor solução, especialmente quando o conflito extrapola a fronteira jurídica (MANCUSO, 2012:153-154; no mesmo sentido: SILVA, 2012:13, que fala da incapacidade cognitiva do Poder Judiciário)179.

A jurisdição efetua apenas mudanças de primeira ordem na sociedade, de natureza apenas contensora, sem trabalhar o potencial transformador (mudanças de segunda ordem), que é ínsito a ADRs como a mediação ou afacilitação assistida (ZAPPAROLLI, 2012: 33-35). Em termos gerais, há grandes dificuldades de introduzir alterações sociais relevantes pela via judicial, conforme sumariado por Scheingold (2004: 5-6,107-108):

- as decisões judiciais não conseguem elaborar formulações de direitos generalizáveis a todos os objetivos sociais;

- os resultados são mais casuísticos e oportunísticos que duradouros e gerais;

- sofisticadas estratégias de judicialização de conflitos restringem-se, geralmente, a meros aspectos legais;

- os litígios costumam ficar restritos às partes em juízo, embora muitas vezes o conflito apresenta profunda repercussão social ou seja fruto de lutas sociais de mais amplo espectro.

- há dificuldade de utilização de uma estratégia coordenada entre o litígio judicial e atuação na arena política.

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Um dos principais pontos de demonstração da insuficiência do Poder Judiciário para a tarefa de ampliação dos direitos previdenciários corresponde à resposta satisfatória em âmbito individual e, no plano coletivo, a dificuldade de mensuração do impacto das decisões judiciais nas políticas públicas (SCHEINGOLD, 2004; FARIA, 1992: 21). Os Tribunais não conseguem estabelecer uma ligação entre as disputas individuais que avaliam e os conflitos estruturais que dividem a sociedade (SANTOS, 2011: 102).

Judicializar conflitos expande a carga de incerteza sobre o direito, porque se agrega à incerteza de expectativa carregada pelos atores em conflito a imprevisibilidade relativa à atitude do terceiro (Poder Judiciário), organismo de um subsistema com capacidade de decisão que atua conforme a lei, as provas, a interpretação do juiz etc. Nem...

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