Materialismo e materialidade do direito/ Materialism and the Materiality of law.

AutorBachur, Joao Paulo
  1. Introducao

    O lugar do direito na sociedade capitalista e, em especial, sua relacao com a economia de mercado constituem tema classico da sociologia do direito de matriz critica. Nao e exagero dizer que esse tema se insere no debate teorico constitutivo do proprio marxismo: a relacao entre a base economica e a superestrutura juridico-politico-ideologica da sociedade capitalista. Nao obstante esse debate conte ja com seculo e meio de idade, ele ainda condiciona significativamente o discurso marxista sobre o direito, o Estado e a politica, em inumeros matizes, com diferentes graus de sofisticacao. Evidentemente, a tradicao marxista e uma das mais ricas manifestacoes intelectuais da modernidade e nao cabe, sem mais nem menos, na definicao estreita do chavao base/superestrutura: de Engels a Toni Negri, passando pela Segunda Internacional, pelo marxismo ocidental, pela escola de Frankfurt, pelo marxismo estruturalista frances e pelo marxismo analitico norte-americano ha um oceano. Mas quando se trata de observar o direito, a politica ou outros fenomenos superestruturais, a irredutibilidade da forma mercadoria parece se impor. Ora, isso e evidente: se essa irredutibilidade e questionada, nao se tem um argumento marxista! Nessa perspectiva, assume-se que o direito, a politica, a cultura, a arte, a ciencia etc. estao amalgamados em uma totalidade cujo sentido ultimo reside nas relacoes economicas; mais propriamente na dinamica entre forcas produtivas e relacoes de producao, para utilizarmos a terminologia classica (Marx & Engels, 1845/1846). E a forma mercadoria que estabelece o padrao basico de sociabilidade a partir do qual as demais relacoes sociais se moldam. E ai que trabalha o capital (Marx, 1867), aquela forca propulsora que arrasta atras de si toda a sociedade em um turbilhao, gerando simultaneamente progresso e barbarie (Benjamin, 1985).

    Antes de mais nada, e preciso dizer que a caracterizacao da sociedade moderna como sociedade capitalista ainda esta correta, mesmo no interior de discursos sociologicos que procuram afirmar o contrario (Bachur, 2010). No entanto, o argumento tipicamente marxista--que nega a autonomia do fenomeno juridico--tende a ortodoxia, como se toda a complexidade da realidade juridica pudesse ser automaticamente decifrada pela relacao entre o direito e a economia, mais ainda, pela relacao causal conforme a qual o fator economico determinaria a relacao juridica. O direito (como a arte, a ciencia, a politica etc.) e anterior ao capitalismo. E claro que a consolidacao da sociedade capitalista e a superacao do direito natural pelo direito positivo nao se reduzem a uma coincidencia historica (idem, ps. 173/195). A cristalizacao do capitalismo esta imbricada no desenvolvimento do positivismo juridico; a sociedade do trabalho somente se estabelece como sociedade do contrato de trabalho (Castell 1999). Mas supor que todo o direito possa ser interpretado como uma funcao do capital nao e um diagnostico convincente. Como equilibrar, portanto, a tarefa de uma sociologia critica do direito fazendo justica a autonomia do fenomeno juridico?

    Este artigo testa uma possivel resposta a essa pergunta. Argumenta-se que a visao marxista tradicional acaba por implicar uma reducao do fenomeno juridico: ela produz no maximo uma critica externa ao direito ao denunciar o vinculo entre a forma juridica e a logica de acumulacao do capital. Embora essa critica esteja correta, ela nao permite mais expandir os horizontes teoricos da sociologia do direito; ela parece esgotar-se em si mesma. Afinal de contas, uma vez afirmada a intima relacao entre o direito e a economia de mercado (o que nao se contesta e que, alias, e ponto pacifico pelo menos desde o proprio Marx), o que mais poderia ser dito do direito na sociedade capitalista, quando se parte do postulado base/superestrutura? O ponto de partida economicista perde de vista nao apenas a autonomia do direito, mas tambem a ambivalencia intrinseca a forma juridica. Ou uma sociedade pos-capitalista estaria livre do direito? Nao haveria divorcios, acidentes de transito, consumo, tributacao, legislacao e tudo o mais? Sera que todas as possiveis operacoes juridicas estao, de saida, determinadas pela logica do capital? O direito nao poderia desempenhar, em tese, uma especie de compensacao ao capital? A historia das lutas de classe sugere que a forma juridica pode, sim, funcionar como bloqueio ao impeto irrefreado do capital. A afirmacao de direitos sociais na segunda metade do seculo XX e um exemplo claro disso (Esping-Andersen, 1985; 1990). Mas e igualmente evidente que, uma vez assegurados, tais direitos podem passar a funcionar nao mais como piso, mas como teto para reivindicacoes sindicais e trabalhistas e congelar, relativamente, processos de transferencia de renda mais radicais. Porem, trata-se ai da questao afeta a capacidade do movimento proletario de se auto-renovar--questao extremamente complexa e da qual nao cuidaremos neste breve ensaio.

    A hipotese deste artigo e a seguinte: sugere-se aqui que a substituicao do postulado elementar do marxismo--a compreensao da sociedade a partir do esquema base/superestrutura--pelo ponto de vista da materialidade do direito pode proporcionar uma descricao mais acurada do fenomeno juridico, renovando, inclusive, a perspectiva de uma sociologia critica. Que o direito tem de ser analisado do ponto de vista da praxis nao resta a menor duvida. Que esse ponto de vista tem de ser o da praxis economica parece disputavel. A pratica juridica e uma pratica material, ancorada no trabalho coletivo, na divisao social do trabalho. Essa materialidade, que sera desenvolvida em maior detalhe ao longo do texto, permite uma critica interna do fenomeno juridico, sem postular uma relacao de causalidade anterior entre a economia e o direito, respeitando a autonomia do fenomeno juridico sem, contudo, descuidar das interferencias extra juridicas atuantes no cotidiano do direito. Em sintese, trata-se de matizar a autonomia do direito, sem abrir mao da materialidade que lhe e constitutiva.

    Para tanto, a argumentacao esta organizada da seguinte forma: apos recuperar a formulacao original de Marx acerca da dinamica entre a base economica e a superestrutura ideologica da sociedade (secao 2), serao apresentadas tres versoes da sociologia marxista do direito que atestam a sedimentacao do esquema base/superestrutura, quais sejam, Ferdinand Lassalle, Jewgeni Paschukanis e Pierre Bourdieu (secao 3). Na sequencia, materialismo e materialidade sao apresentados em contraponto (secao 4), para sustentar a apresentacao de uma perspectiva que parece estar mais proxima da vida real dos tribunais, a saber, a etnografia juridica de Bruno Latour (secao 5). Embora a antropologia da modernidade de Latour nao se encaixe no rotulo marxista, ela parece permitir uma renovacao do vies critico da sociologia do direito. Ao final, as conclusoes do trabalho sao rapidamente sintetizadas (secao 6).

  2. O direito--base ou superestrutura?

    A forca com a qual o postulado base/superestrutura rege, ainda, a analise marxista do direito e notavel (Spitzer 1983). Mesmo os marxistas menos ortodoxos se socorrem dessa formula quando a coisa aperta (Jessop 1992, p. 259). Nao e possivel, nem razoavel, tentar aqui um balanco da importancia desse postulado para o marxismo. Em certo sentido, a historia do marxismo gira em torno dele (cf. Eagleton 2012, p. 107 e ss.). A Segunda Internacional, por exemplo, com a chamada "querela do oportunismo" (Schorske, 1955), discutia se a contradicao entre forcas produtivas e relacoes de producao alcancaria aquele cume preconizado no Manifesto do Partido Comunista, a partir do qual a sociedade burguesa comecaria a ruir. Em ultima instancia, estava em jogo a discussao acerca da autonomia da superestrutura em relacao a base economica. Uma outra discussao, e.g., a questao acerca do predominio do trabalho produtivo ou do trabalho improdutivo na sociedade atual, tem como pano de fundo o mesmo postulado: o trabalho improdutivo (incrustado na superestrutura burocratica, publica e privada, da sociedade) existe para controlar e assegurar a rentabilidade do trabalho produtivo (localizado na base economica da sociedade) (Fausto, 1987). Um discurso tao solidamente assentado nao pode ser desconsiderado sem mais nem menos. Por essa razao, vale a pena retomar a formulacao original da relacao entre base e superestrutura, recontextualizando-a a luz da teoria marxiana em sua fase mais madura.

    A formulacao ocupa apenas algumas linhas, menos de um paragrafo, do Prefacio ao livro Para a critica da economia politica (Marx, 1859). Apos mencionar o caso dos roubos de lenha no vale do rio Mosel, responsavel por chamar sua atencao para os "interesses materiais", Marx emprega os termos base ("Basis") e superestrutura ("Oberbau")--ao que tudo indica, nao para formular uma especie de teoria da diferenciacao, mas para fazer um contraponto a filosofia do direito de Hegel, que via no desenvolvimento das formas juridicas e politicas um desdobramento do espirito. O Prefacio a Para a critica da economia politica marca uma mudanca de enfoque, iniciada com os Manuscritos economico-filosoficos de Paris (Marx 1844) e cujo ponto alto e a publicacao de O capital (Marx, 1867). Com efeito, em meados da decada de 1840 Marx concluira um percurso de intensos estudos hegelianos, notadamente uma revisao da filosofia do direito de Hegel, cuja conclusao e a de que "relacoes juridicas e formas de Estado nao sao compreensiveis a partir de si mesmas, nem do chamado desenvolvimento geral do espirito humano, mas, ao contrario, enraizam-se nas relacoes materiais da vida ["materielle Lebensverhaltnisse"]" (Marx, 1859, p. 8). A partir de entao, Marx passa a estudar profundamente a economia politica, a anatomia da sociedade civil, pois e a partir dai que ele extrai argumentos para refutar o idealismo hegeliano. Marx sintetiza da seguinte maneira seus estudos economicos:

    "Na producao social da vida, as pessoas...

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