O marxismo fora do lugar

AutorAlvaro Biacnhi
CargoProfessor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor adjunto do Arquivo Edgard Leuenroth - Centro de Pesquisa e Documentação Social
Páginas177-204
Artigo
O marxismo fora do lugar
Alvaro Bianchi *
No queremos, ciertamente, que el socialismo
sea en América calco y copia. Debe ser creación
heroica. Tenemos que dar vida, con nuestra propia
realidad, en nuestro propio lenguaje, al socialismo
indoamericano. He aquí una misión digna de una
generación nueva. (MARIÁTEGUI, 1987, p. 249.)
Resumo
O artigo discute a dificuldade presente para o desenvolvimento de um
marxismo latino-americano. Essa dificuldade pode remeter à própria obra
de Karl Marx e Friedrich Engels e à filosofia da história que se faz presente
em alguns momentos dessa obra. A análise da situação irlandesa e da co-
muna rural russa, entretanto, permitiram a esses autores e, principalmente
a Marx romper com essa filosofia da história. A seguir o artigo discute uma
tentativa de interpretação da América Latina e particularmente do Brasil
com base na obra de Marx: aquela desenvolvida no âmbito do chamado
Seminário d’O Capital. Neste Seminário gestou-se uma forma de apropriação
da obra de Marx na qual se destacavam seus aspectos metodológicos. Ape-
sar das importantes contribuições dos autores vinculados a esse seminário,
dentre os quais Fernando Henrique Cardoso e sua análise das situações
de dependência, essa apropriação da obra de Marx revelou claros limites.
Argumenta-se, por último a necessidade do marxismo construir uma uni-
dade profunda entre teoria e prática, pesquisa teórica e pesquisa empírica
para superar os impasses da interpretação da América Latina.
Palavras-chave: Marxismo, Teoria da Dependência, intercâmbio desigual,
América Latina.
* Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) e diretor adjunto do Arquivo Edgard Leuenroth - Centro de
Pesquisa e Documentação Social. Endereço eletrônico: albianchi@terra.com.br.
178 p. 177 – 203
Volume 9 – Nº 16 – abril de 2010
Embora a presença de Marx seja incontornável em nosso sub-
continente, a existência de um pensamento marxista latino-
americano deveria surpreender dadas as dificuldades que Marx
e Engels demonstraram para apreender a realidade da América
Latina. Em alguns momentos chegaram até mesmo a adotar uma
visada eurocêntrica que repercutia uma filosofia da história de corte
hegeliano. Se bem fosse Engels e não Marx quem estivesse mais
preso a essa filosofia, o que se evidencia nas repetidas vezes em
que este fez referência aos “povos sem história”, ela não deixava
de se fazer presente no autor d’O Capital.
Embora o volume de textos de Marx sobre a América Latina
seja maior do que se pensava há algumas décadas, não é possível
encontrar nesses textos senão indicações muito rudimentares para
se pensar a América Latina. Nesse ponto contrasta, tanto pelo volu-
me como pela originalidade, a atenção dedicada por Marx à análise
da história dos Estados Unidos. Aí está um ponto sobre o qual o
pensamento crítico deveria se debruçar com mais atenção. A com-
paração entre as análises de Marx e Engels referentes aos Estados
Unidos e à América Latina evidencia as dificuldades encontradas
por ele para tratar desta última.
Essa dificuldade se expressa na diferença existente entre o
tratamento dispensado por Marx ao presidente dos Estados Uni-
dos Abraham Lincoln e a Simon Bolívar, libertador da América. Em
uma carta a Lincoln redigida por Marx e publicada em dezembro
de 1864, a Associação Internacional de Trabalhadores (AIT) congra-
tulava “o povo americano pela sua reeleição por larga maioria”. E
acrescentava: “Se a resistência ao Poder Escravista era a moderada
palavra-de-ordem de sua primeira eleição, o grito de batalha triun-
fal de sua reeleição é Morte à Escravidão.” (MECW, 20, p. 19).1 E
concluía afirmando que os trabalhadores da Europa consideravam
um “augúrio da época em que entramos que tenha correspondido a
Abraham Lincoln, o determinado filho da classe trabalhadora, liderar
seu país através de uma guerra sem precedentes com o propósito de
1 A carta não deixava de saudar o nascimento em solo americano, um século
antes da “ideia de uma grande República democrática”, da “primeira declaração
dos Direitos do Homem” e do “primeiro grande impulso à revolução européia
do século XVIII”.

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