Marxismo e a critica ao Direito moderno: os limites da judicializacao da politica/Marxism and the critique of modern law: the limits of the judicialization of politics.

AutorMotta, Luiz Eduardo

Introducao

O presente artigo visa resgatar a contribuicao do pensamento marxista sobre a problematica do Direito moderno, cuja expressao teorica encontra-se na perspectiva liberal, e, consequentemente, apontar os limites dessa perspectiva no que concerne ao avanco e afirmacao dos direitos, a exemplo do fenomeno contemporaneo da judicializacao. Se o liberalismo, em suas diferentes vertentes, trata o direito de um ponto de vista neutro, e o associa ao conceito de justica, o marxismo - a despeito de suas distincoes internas - define o direito pelo seu aspecto coativo de forca ou violencia estatal para a manutencao da ordem. Veremos, portanto, que a analise marxista se situa num campo realista sobre o fenomeno da judicializacao em oposicao a perspectiva normativa liberal que entende positivamente o direito enquanto uma forma racional oposta a violencia. Para alem de Marx e Engels que ja teciam criticas ao direito moderno (burgues), empregarei as contribuicoes de Pachukanis, Althusser, Edelmann, Negri e Poulantzas.

1) A judicializacao como fenomeno sociopolitico

A partir dos anos 1990 a agenda das Ciencias Sociais apresentou um tema que vem sacudindo desde entao os estudiosos da Sociologia do Direito e da Ciencia Politica. O tema em tela e o fenomeno da judicializacao politica e social, no qual se pos em evidencia as estruturas e praticas juridicas por intermedio de seus atores institucionais, sobretudo pelos magistrados e procuradores da Republica, alcancando ate entao uma projecao inedita no cenario politico.

O fato e que desde a decada de 1990 ampliou-se no Brasil o interesse pela leitura de pensadores da filosofia do direito contemporaneo como John Rawls, Ronald Dworkin, Bruce Ackermann, Michael Walzer, alem dos ja conhecidos Jurgen Habermas e Norberto Bobbio. Por outro lado, cresceu tambem a demanda por pesquisadores das Ciencias Sociais que tratavam do direito a partir de temas como acesso a justica, cidadania e judicializacao a exemplo de Mauro Cappelletti, C. Neal Tate, Torbjon Vallinder, Boaventura de Sousa Santos, Niklas Luhmann.

O efeito dessa onda dos temas da justica, do direito e dos aparelhos de justica teve um grande impacto no campo das Ciencias Sociais no Brasil, especialmente na area da sociologia e da ciencia politica. A ponta de lanca dessa producao se fez presente nos trabalhos de Werneck Vianna e Maria Tereza Sadek sobre o papel da magistratura e do Ministerio Publico, respectivamente. Seguindo essa direcao aberta por Werneck Vianna e Sadek temos as pesquisas de Rogerio Arantes, Catia Aida Silva, Andrei Koerner, Fabiano Engelmann, Vanessa Oliveira, Debora Maciel, Luciana Tatagiba e Marcelo Pereira de Mello entre outros. Os objetos de analise acabam transcendendo as instituicoes e atores inicialmente analisados--juizes e procuradores--ao englobar o fenomeno da judicializacao o Tribunal de Contas da Uniao, as politicas publicas sobre saude e educacao infantil, o processo civil, a Defensoria Publica, etc. Um dos resultados bibliograficos desse conjunto de pesquisas pode ser visto no livro organizado por Luiz Eduardo Motta e Mauricio Mota publicado em 2011, O Estado Democratico de Direito em questao: teorias criticas da judicializacao.

Essas pesquisas indicadas acima, no geral tinham uma leitura positiva sobre o fenomeno da judicializacao e do crescimento da atuacao no cenario politico por parte das representacoes funcionais dos aparelhos judiciarios. Uma das raras excecoes e a pesquisa de Rogerio Arantes (2000) sobre Ministerio Publico, indicando os limites da soberania da democracia popular com o crescimento da acao dos promotores no campo politico. Mas a percepcao positiva diante as acoes do MP e do judiciario - estava embalada pelo sucesso de varias operacoes de combate a corrupcao na virada do seculo, e nas quais o objeto de investigacao era composto por varios segmentos representativos do poder politico e economico como magistrados, procuradores, empresarios, delegados agentes policiais, politicos e banqueiros. Podemos citar como exemplo dessas operacoes que tiveram grande repercussao midiatica as Marka/FonteCindam, Anaconda, Vampiro, Satiagraha, Sanguessugas, etc.

Essas acoes deram embasamento teorico e empirico - visto que essas acoes defendiam os interesses republicanos - ao conceito de Estado de Direito cujo sentido define o direito como um medium entre o Estado e a sociedade civil. Ademais isso veio a fortalecer a concepcao de que preponderava a neutralidade axiologica nas instituicoes de justica moderna, guiadas pelos principios republicanos neutros com relacao aos conflitos de classes. As mudancas e avancos se dariam apoiadas nesses espacos institucionais neutros, e que alem de garantirem o equilibrio da sociedade, tambem atuam na manutencao e criacao dos direitos.

O fato e que com a crise do legislativo nas decadas seguintes ao pos-II Guerra, os aparelhos de justica do Estado tiveram um enorme crescimento em termos de demanda e de intervencao no campo politico, o que veio a ser classificado como a judicializacao da politica, ou a politizacao do judiciario.

Um texto exemplar sobre esse fenomeno da judicializacao e o de Ferejohn publicado em 2003 Judicializing politics, politicizing law (Judicializando a politica, politizando o Direito). Esse artigo de Ferejohn e paradigmatico no tocante a sintetizar os principais aspectos desse fenomeno politico. Como ele percebe, desde o fim da II Guerra cada vez mais houve um deslocamento do poder legal originario do poder Legislativo para os tribunais e outras instituicoes juridicas. Isso pode ser percebido no caso da Operacoes Maos Limpas na Italia, no julgamento da junta militar argentina e na decisao da Corte Suprema dos EUA na eleicao de Gore x Bush. O mesmo aqui no Brasil em relacao a Operacao Lava Jato entre outras operacoes envolvendo o governo PT. Ferejohn indica ao longo do artigo a linha tenue entre os poderes republicanos--questao ja abordada no livro XI do Espirito das Leis de Montesquieu e na contribuicao do pensamento marxista sobre o Estado -, e aponta a intensa fragmentacao do poder entre as instituicoes politicas, o que vem a limitar a capacidade de cada uma tem em legislar. Para Ferejohn isso resultaria em um movimento pelo qual as pessoas, buscando solucoes para o conflito, gravitariam para instituicoes que sejam capazes de produzir solucoes (Ferejohn, 2003: 41- 43).

Com o descenso do legislativo (problematica cuja ciencia politica europeia ja apontava nos anos 1970, [vide Poulantzas (1978)], aconteceu uma migracao do poder legislativo para as agencias e tribunais, o que significa que eles, sobretudo os tribunais, tomarao decisoes politicamente importantes e muitas vezes definitivas.

Ha certamente uma crenca de Ferejohn na neutralidade institucional e de seus atores envolvidos como fica perceptivel nessa passagem

o requisito de uma supermaioria para a confirmacao de indicacoes significa que novos juizes terao de contar com uma aceitacao mais ampla, para alem de divisoes partidarias e ideologicas, o que desencorajaria a indicacao de juizes com conviccoes ideologicas extremas e, a longo prazo, resultaria em tribunais ocupados por magistrados moderados. (IDEM, p. 66). A concepcao liberal do direito e da judicializacao expressada por Ferejohn, acaba obscurecendo a quem de fato os agentes politicos do legislativo, executivo e do judiciario representam socialmente e politicamente nos aparatos estatais. O lugar que ocupam e atuam, e que reproduzem em suas praticas, nao e devido a meros principios abstratos e formais, mas sim a conflitos sociais inerentes a sociedade capitalista contemporanea. Uma questao ambiental ou trabalhista que envolve setores opostos as grandes empresas, seja no Legislativo, Executivo ou Judiciario fara evidenciar qual a posicao que o agente estatal tomara diante da direcao politica e ideologica na qual ocupe em sua funcao.

Essa crenca de que as instituicoes por si mesmas fomentam a mudanca, e defendem os direitos, esta presente em Habermas para quem o conflito social--pelo menos no tocante as lutas de classes - inexiste mediante a sua utopia de uma acao comunicativa na qual os agentes conseguem obter um consenso mediante alguma disputa. Isso significa afirmar que ha uma perfeita isonomia entre os agentes interlocutores e transparencia em seu dialogo, nao havendo ocultamento nas acoes, ou distincoes de posicao social: todos partem de um mesmo ponto, nao havendo beneficio a priori daqueles que detenham o maior capital economico, politico e cultural.

E Habermas, desde que adotou o liberalismo como modelo politico e intelectual quando abandonou o marxismo presente em seus trabalhos iniciais, tornou-se um dos intelectuais que mais veio a defender o projeto da modernidade burguesa, em especial as instituicoes politicas que emergiram na modernidade a exemplo do Estado de Direito, pelo menos se comparado ao Estado Totalitario. Ainda que o mundo vida esteja cerceado pelos sistemas politico, juridico e economico, no sistema liberal a esfera publica ainda e o espaco por excelencia de resistencia e de constituicao da diversidade de opinioes dos diversos segmentos da sociedade civil (1).

Como ele mesmo observa:

o poder do Estado so adquire uma figura institucional fixa na organizacao das funcoes das administracoes publicas. Peso e abrangencia do aparelho do Estado dependem da medida em que a sociedade se serve do medium do direito para influir conscientemente em seus processos de reproducao. (...) O poder publico so pode desenvolver-se atraves de um codigo juridico institucionalizado na forma de direitos fundamentais (HABERMAS, 1997: p. 171). O Direito moderno para Habermas e o elemento central na fundacao do poder do Estado. Nao e a forma do direito que legitima o exercicio do poder politico, mas sim a ligacao com o direito legitimamente estatuido. Dai se percebe o quanto a normatividade do Direito atravessa o Estado moderno como um tecido. Nao se pode pensar na legitimidade do poder do Estado moderno sem...

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