Marxism and psychology: contributions to a materialist observation on the individual/Marxismo e psicologia: aportes para uma reflexao materialista sobre o individuo.

Autorde Paiva, Ilana Lemos

Introducao

Ao falar-se sobre a obra marxiana, uma das questoes que, em geral, revela-se mal interpretada, e a referente ao "individuo". Em verdade, para uma obra materializada em milhares de paginas ao longo de quase cinco decadas, nao e tal tema o unico que levanta controversias. A possivel distincao entre um Marx "jovem" e um "maduro", as acusacoes de economicismo, determinismo, eurocentrismo, chegando ao seu cume na imputacao de anti-semitismo, perfazem criticas que demonstram, de um lado, o desconhecimento de seus escritos e, de outro, a necessidade de deslegitimar aquele que foi o principal interprete que as classes trabalhadoras ja forjaram.

Bem e verdade que Marx priorizou, em suas investigacoes e escritos, a economia, especialmente o modo de producao capitalista. Apos estudos no Direito e na Filosofia, chegou a conclusao de que e o trabalho e a maneira como as pessoas se reproduzem socialmente que permitem a edificacao dos campos da vida em sua totalidade. Ou, como diria em O Capital, relacoes sociais de producao e meios de producao sempre existiram; foram suas distintas combinacoes que possibilitaram, contudo, especificas formacoes sociais e determinados padroes de sociabilidade.

Por outro lado, uma leitura detida de Marx aponta que essa sua opcao metodologica nao o levou a ignorar temas importantes e, ademais, forneceu categorias que possibilitariam a seus seguidores compreender a realidade em suas multiplas dimensoes, por mais multifacetaria que a mesma se tornasse apos a sua morte. E e nesse contexto que se insere o debate sobre o marxismo, a psicologia e o individuo.

O presente artigo, portanto, volta-se a analise deste objeto, a partir da propria obra marxiana, das categorias trabalho e ser social. Para tanto, em um primeiro momento, refletir-se-a sobre a tensao e descompassos entre psicologia e marxismo. Logo apos, desenvolve-se a analise das categorias trabalho e ser social, como imprescindiveis para a compreensao do individuo.

Posteriormente, partindo da obra Sobre o Suicidio, de Marx, busca-se refletir sobre a existencia de uma "natureza humana" e a formacao do individuo na sociedade moderna. Por fim, conclui-se pela importancia do marxismo e suas categorias fundantes para a compreensao do individuo e sua relacao com a sociedade, reposicionando a relacao da psicologia com o marxismo.

  1. Os (des)compassos entre o Marxismo e a Psicologia

    Ao longo do seu desenvolvimento como ciencia e profissao, a psicologia tem se deparado com uma serie de desafios impostos especialmente pelas caracteristicas em torno das quais evoluiu historicamente, associadas as transformacoes pelas quais passou no tocante a sua insercao profissional e aos debates em torno do seu lugar de classe.

    Certamente tais questoes nao se abateram sobre toda a categoria, mas o fato e que parece ser consensual, internamente, que a psicologia, assim como toda ciencia, precisa produzir conhecimento novo, referenciais que deem conta de novas demandas e sujeitos psicologicos que emergem em decorrencia de um mundo no qual nunca estivemos tao dependentes uns dos outros e ao mesmo tempo tao distantes. Cada vez mais necessitamos das mercadorias produzidas por outrem, mas cada vez mais sofremos do estranhamento de nos mesmos e dos outros homens (Lessa, 1995).

    Para uma ciencia que se estruturou tendo como base uma concepcao de sujeito/individuo como um ser abstrato, a-historico, cujas determinacoes centravam-se nos dominios do inconsciente, da genetica ou da experiencia, deparar-se com questoes relativas a forma como uma sociedade se organiza para garantir a producao dos meios que permitam sua reproducao social permaneceu, por decadas, como um cenario pouco afeito ao interesse dos psicologos. Esse quadro sofre mudancas quando influencias variadas chegam a psicologia e alteram referenciais ate entao considerados eixos base de formacao e atuacao para qualquer campo, tempo ou lugar. O marxismo foi um deles e e possivel identificar sua influencia em algumas perspectivas teoricas dessa ciencia, seja por meio da apropriacao da forma como Marx operou, nomeando-a como um metodo materialista historico-dialetico (como e o caso de algumas vertentes da psicologia social), seja na base material de construcao do homem por meio do trabalho (psicologia socio-historica), ou ainda tomando como base alguns principios da teoria marxiana, mas extrapolando-os ao acrescentar categorias as identificadas por Marx. Este foi o caso de Vigotsky, pensador que fundamenta a psicologia historico-cultural junto com Leontiev e Luria, e a psicologia socio-historica a psicologia da libertacao, para nomear algumas tendencias apontadas como 'criticas' na psicologia.

    E preciso considerar, nesse resgate, que algumas tentativas para a apropriacao da teoria marxiana redundaram na proposicao de uma psicologia marxista, o que, considerando radicalmente a obra de Marx, nao nos parece possivel, considerando que o marxismo nao pode ser adjetivo sob as fronteiras artificiais de uma disciplina cientifica, nem cabe nos limites do que se ha definido como ciencia psicologica, mesmo com suas transformacoes. Portanto, o que se propoe nesse texto e tentar, por meio de aproximacoes as mais fieis possiveis, mas sabendo das extrapolacoes necessarias, trabalhar um conceito essencial para a psicologia, mas que e visto como negligenciado ou nao abordado devidamente por Marx: o individuo. Talvez essa busca ainda seja um ranco da tradicao da psicologia de se intitular ciencia do sujeito, do unico, mas, pensando mesmo nessa logica, e possivel a apropriacao de uma perspectiva de individuo abordada por Marx e seus discipulos mais proximos teoricamente, que sirva a psicologia?

    Antes de adentrar nesse debate, e mister resgatar a atualidade do marxismo. Rechacado na academia, associado a analises do modo de producao capitalista do seculo XIX e consideradas ultrapassadas (vide exemplo das teses defendidas pela escola de Frankfurt), as analises marxistas que mantem a centralidade do trabalho como elemento base de uma ontologia do ser social enfrentam resistencia nos tempos em que 'tudo que e solido se desmancha no ar' e das teses do fim da historia (Fukuyama, 1992). Entretanto, numa sociedade na qual toda a sociabilidade se funda estruturada na contradicao capital-trabalho em sua genese, negligenciar Marx na compreensao da sociedade capitalista implica permanecer ausente de qualquer analise lucida sobre tal modo de producao em qualquer tempo historico.

    Portanto, se a psicologia ou vertentes dela almejam tensionar seus limites nas discussoes sobre individuo e, consequentemente, sobre seu papel/lugar de classe, a imersao em Marx e requisito inegociavel. Em sua passagem das perspectivas tradicionais para as criticas, com a influencia de um contexto de golpes militares por toda a America Latina, nas decadas de 1960 e 1970, varias frentes de insurgencia acabaram por provocar a psicologia com relacao ao seu 'papel social'. Esse movimento, conhecido no Brasil como crise de relevancia social da psicologia, ensejou a busca por alternativas no campo que questionavam politicamente o lugar da ciencia e da profissao. E nesse momento que se abre o espaco para a emergencia de saberes outros que traziam visoes de mundo, de contexto macroestrutural, de classe social e suas lutas para o interior da profissao. E a psicologia encontra Karl Marx. Embora contribuindo na mudanca de varias perspectivas, o incomodo acerca da analise sobre o sujeito psicologico permanecem, talvez sob a justificativa de que, como dissemos, a questao do individuo nao foi uma preocupacao central para Marx. Todavia, e possivel observar que houve certa dedicacao a essa questao em algumas de suas obras. Mais: que categorias marxianas, mesmo que tocando tangencialmente este objeto, fornecem pilares para investigacoes sobre o individuo. Desconsidera-las implica, antes de tudo, atribuir ao ser humano uma natureza a-historica e, dessa maneira, absolutizar o...

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