Marx beyond Hegel--An interpretation from the Philosophy of Liberation/Marx alem de Hegel--Uma interpretacao a partir da Filosofia da Libertacao.

AutorDiehl, Diego
CargoResena de libro
  1. Consideracoes iniciais

    O jubileu dos duzentos anos do nascimento de Marx oportuniza discutir uma enorme variedade de temas relacionados a trajetoria intelectual e militante do revolucionario de Treveris, bem como as diversas tradicoes teoricas e praticas no campo do(s) marxismo(s). Nos ultimos trinta anos, o que vimos foi uma profunda renovacao dos debates nesse campo sobre diferentes questoes, animada tanto pela publicacao de textos marxianos ineditos (ou com novas e mais rigorosas traducoes), como por uma revisita a textos ja conhecidos mas que haviam sido classificados como "menos relevantes" para se obter um panorama rigoroso e coeso em torno dos fundamentos do materialismo historico.

    O que se conquistou em termos qualitativos neste periodo nao e desprezivel, dado que ao longo do sec. XX prevaleceu no campo dos marxismos ora a ideologia estalinista (sobretudo no plano dos partidos comunistas), ora o estruturalismo althusseriano (sobretudo no plano das universidades) em suas posturas "cientificistas", anti-dialeticas e anti-humanistas. No entanto, nao e desprezivel que, em termos quantitativos, os ultimos trinta anos tambem viram uma reducao do interesse da juventude, dos intelectuais e mesmo de parte da militancia social pela obra de Marx, por razoes diversas que nao poderao ser discutidas neste artigo (1).

    A America Latina muito contribuiu para a renovacao destes debates, e nomear as principais correntes de teoricos e/ou militantes nos levaria certamente a cometer injusticas, dada a grande diversidade existente nos marxismos latinoamericanos. Desse modo, nosso objetivo no presente texto e apresentar a contribuicao especifica de uma destas perspectivas, qual seja, a Filosofia da Libertacao arquitetada por Enrique Dussel.

    E importante esclarecer que a propria Filosofia da Libertacao possui diferentes orientacoes, temas e perspectivas, ainda que a obra de Dussel seja hoje considerada a mais representativa dessa corrente do pensamento critico latinoamericano. O filosofo argentino-mexicano, que ingressou no debate filosofico sob uma perspectiva heideggeriana e logo incorporou (e re-projetou) a problematica da Alteridade e da Exterioridade proposta por Emmanuel Levinas, passou por diversos embates teoricos com marxistas que acreditavam tratar-se de uma concepcao filosofica apologetica do "populismo" latinoamericano (vide nesse sentido CERRUTI GULDBERG, 1992).

    De fato Dussel entrara no debate sobre a construcao de uma filosofia autenticamente latinoamericana armado de criticas que, em principio, dirigia ao proprio Marx (DUSSEL, 1972). Porem logo percebera que, em realidade, suas criticas estavam mais dirigidas aos marxismos hegemonicos dos anos 1960-70 do que propriamente ao revolucionario de T reveris (DUSSEL, 1986).

    De todo modo, ha ainda uma gama imensa de preconceitos de certos marxistas contra a Filosofia da Libertacao, ora por ter uma ligacao historica com a Teologia da Libertacao (ainda que seus estatutos gnosiologicos e epistemologicos sejam distintos e independentes), ora por tratar de conceitos e categorias tidos como "metafisicos" ou "idealistas" pelo marxismo standard. Tal fato, longe de depor contra a Filosofia da Libertacao, apenas evidencia a importancia desta perspectiva (fundada ao final dos anos 1960) para a renovacao do proprio marxismo.

    Talvez um dos temas mais importantes--e ao mesmo tempo polemicos--em que a Filosofia da Libertacao contribuiu neste periodo se refere a forma com que Marx incorporou em sua teoria a filosofia de Hegel, questao espinhosa e que gera ate hoje polemicas entre as diferentes correntes marxistas, tanto do passado como do presente. Isso porque, de um lado, existem perspectivas que explicitamente negam a influencia hegeliana no materialismo historico de Marx2, e por outro ha uma imensa gama de "marxismos hegelianos" que buscam enfatizar essa relacao teorica entre os dois autores (3).

    Ha ainda aqueles que se "aventuram" a pensar Marx associando-o a outras tradicoes teoricas--portanto sem a presenca de Hegel--, como e o caso de Antonio Negri, que propoe a reelaboracao do pensamento marxiano a partir da filosofia de Baruch Spinoza. Negri nao se propoe no entanto a afirmar que sua interpretacao coincida necessariamente com o pensamento marxiano, e nesse sentido propoe uma reconstrucao teorica que supere o proprio Marx ("Marx alem de Marx"; NEGRI, 1991).

    Veremos neste artigo que a Filosofia da Libertacao proposta por Dussel concebe uma relacao teorica marcada por contradicoes (no sentido dialetico do termo) entre Marx e Hegel, que nao se pautam nem pela afirmacao da filosofia hegeliana e nem pela sua unilateral negacao, mas por uma efetiva negacao da negacao, como subsuncao (ressignificadora) de metodo, conceitos e categorias, e como superacao da visao de mundo (Weltanschauung) apresentada por Hegel. Nao se trata portanto de afirmar um Marx "com Hegel", nem muito menos "contra Hegel", mas de um "Marx alem de Hegel" --em sentidos muito mais profundos e radicais do que comumente se afirma.

    Tradicionalmente, a superacao da filosofia hegeliana por Marx e ilustrada com a famosa "alegoria da inversao": o idealismo de Hegel concebia o mundo "de cabeca para baixo", bastando entao uma concepcao materialista que "pusesse as coisas em seus devidos lugares". Tal afirmacao pode ate parecer "didatica", porem nao apenas peca pelo reducionismo como tambem vulgariza a subsuncao operada por Marx, que esta longe de se limitar a disjuntiva "idealismo/materialismo" filosofico.

    Nesse sentido, apresentaremos neste texto aquilo que, segundo a Filosofia da Libertacao, pode ser compreendido como duas grandes fases de rupturas fundamentais de Marx com a filosofia hegeliana, uma mais conhecida pelas tradicoes teoricas marxistas (mas com implicacoes mais profundas que o comumente observado), e outra rigorosamente nova nos debates teoricos em virtude da afirmacao de um "ultimo Marx" (segundo DUSSEL, 2007), que representa a superacao de concepcoes evolucionistas, eurocentricas ou "historicistas" que se encontram presentes ate hoje, com profundas implicacoes para uma renovacao da perspectiva revolucionaria marxiana.

    Tais rupturas nao representam, como dissemos, uma mera "negacao" antidialetica, dado que, para Marx, a filosofia hegeliana havia que ser subsumida dialeticamente para possibilitar a compreensao da essencia do Capital, nao apenas como modo de producao mas tambem como relacao social. De fato, como dissera Marx (2013a, p. 129) no posfacio a segunda edicao d'O Capital, Hegel nao era um "cachorro morto" e seu metodo seria decisivo para a construcao do seu marco categorial fundamental.

    Dussel destaca esse aspecto em sua paciente revisao do lento e complexo processo de construcao da obra maxima de Marx (DUSSEL, 2004; 1988; 2007), mas tambem afirma que seu projeto nao se limitava a produzir uma mera ontologia da sociedade burguesa. O Capital representa acima de tudo uma etica, que critica a totalidade capitalista a partir de criterios que nao sao intra-sistemicos ou meramente imanentes (para utilizar um termo muito em voga atualmente), mas sao de fato extra-sistemicos, transcendentes, pois partem de uma Exterioridade que e cotidianamente negada no ambito do Ser Social.

    Essa Exterioridade e representada pela subjetividade do(a) trabalhador(a), cujo trabalho vivo e "sugado" pelo "vampiro" capitalista quando e subsumido(a)--formal e materialmente--no processo de trabalho assalariado. Tal subsuncao representa uma alienacao, pois e a negacao dessa Exterioridade sob a forma de exploracao, extracao do mais-valor, que e entao incorporado na Totalidade do sistema capitalista. Ainda que tais temas nao possam ser discutidos em profundidade neste breve artigo, apresentaremos alguns destes aspectos que ja se encontram presentes na primeira fase da ruptura de Marx com a filosofia hegeliana, e que se consolidarao na segunda fase dessa ruptura, descritas nos itens a seguir.

  2. As duas fases de rupturas fundamentais: Marx alem de Hegel

    A formacao teorica de Marx em sua juventude e um tema bem conhecido, ainda que certas nuances continuem passando despercebidas para muitos estudiosos do pensamento marxiano (4). Tendo iniciado o curso de Direito em 1836 na Universidade de Bonn, sua transferencia no ano seguinte para a Universidade de Berlim nao so lhe permitiu ter acesso as aulas de grandes juristas da epoca (Savigny, Gans etc), mas sobretudo lhe abriu portas para travar contato com a filosofia hegeliana, logo aderindo ao grupo dos "jovens hegelianos" (ou "esquerda hegeliana"), levando-lhe a desistir do curso de Direito em prol dos estudos de Filosofia (5).

    As posicoes politicas e teoricas de Marx neste periodo ainda consideram o comunismo como uma "abstracao sem sentido" (6), com pouco interesse por o que futuramente chamara de "temas de interesse material" (MARX, 2007b, p. 46), mas com uma atuacao bastante incisiva contra o autoritarismo do Estado prussiano daquela epoca. Trata-se de um Marx radicalmente democrata, que promove criticas acidas contra as restricoes a liberdade de imprensa, de catedra, de associacao e de reuniao etc.

    Como retaliacao contra tal atuacao (que nao era isolada, mas promovida por todos os principais sujeitos ligados a "esquerda hegeliana"), o projeto de desenvolver uma carreira academica e subitamente interrompido por esse mesmo Estado prussiano, cujo maior expoente no plano filosofico era, justamente, Hegel. Surge ai o inicio de um projeto de critica do Estado autoritario da Prussia por meio de uma critica a filosofia politica e juridica arquitetada por Hegel.

    O trabalho que assumira nesse interim, como jornalista e editor-chefe da Gazeta Renana, permitira a Marx ter acesso a temas "materiais" (economicos, politicos etc), que darao novos elementos para tracar o plano de uma Critica da Filosofia do Direito de Hegel. Trata-se do primeiro intento de critica do Estado por parte de Marx, "nao so como uma critica do Estado prussiano em todas as suas deformacoes particulares, mas...

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