Maria Helena Tenorio de Almeida.

CargoEntrevista - Entrevista

Introducao

A entrevista realizada com Maria HelenaTenorio de Almeida (1), assistente social e professora universitaria de Servico Social da UFRJ e da UERJ, ja aposentada, reconstroi a memoria das opcoes, percursos, contingencias e lutas de sua trajetoria de vida antes e depois de 1964. A entrevista revela a profunda experiencia de formacao humana e democratica de Maria Helena, anterior ao golpe militar, que se expressa no ambito da vida cotidiana quando de sua socializacao no universo familiar no interior rural de Pernambuco, na participacao no Movimento de Educacao de Base (MEB) e no movimento da Juventude Estudantil Catolica (JEC). Os tempos da memoria e da historia social da entrevistada se entrelacam aos tempos da sociedade e produzem uma rica experiencia de resistencia a ditadura, atraves da sua insercao na Juventude Universitaria Catolica (JUC) e na Acao Popular (AP), que permite resgatar a memoria desse periodo e a partcipacao de assistentes sociais na resistencia democratica e na construcao critica ao conservadorismo da profissao.

Ao iniciarmos a realizacao da entrevista, Maria Helena, como anfitria acolhedera e pessoa que preza uma boa conversa, nos recebeu com uma travessa de bolo de aipim, feito por ela mesma. Nos convidou a sentar, abriu um livro de Bourdieu, A Miseria do Mundo, e iniciou a leitura, como a nos lembrar da delicadeza do momento e do cuidado necessario com a memoria e as palavras ali reveladas. Retomamos aqui um trecho dessa leitura e esperamos ter seguido de forma fiel o que nele esta contido.

Como, de fato, nao experimentar um sentimento de inquietacao no momento de tornar publicas conversas privadas, confidencias recolhidas numa relacao de confianca que so se pode estabelecer na relacao entre duas pessoas? Sem duvida, todos os nossos interlocutores aceitaram confiar-nos o uso que seria feito de seus depoimentos. [...] Deviamos, pois, cuidar primeiramente daqueles que em nos confiaram [...]; mas convinha tambem, e acima de tudo, procurar colocalos ao abrigo dos perigos aos quais nos exporiamos suas palavras, abandonando-as, sem protecao, aos desvios de sentido. (BOURDIEU, 1999, p. 9)

Prologo de Maria Helena a entrevista

Falo de coracao, nao acho que o que eu fiz foi importante para alguem. Foi importante para mim, porque era a unica coisa que eu poderia fazer no momento. Tem momentos na vida que a gente nao tem muita escolha. Eu nao podia ir embora para o exterior. E se eu nao podia ir embora para o exterior, entao: vou voltar a viver minha vida que eu neguei, desde que eu comecei a ter consciencia de alguma coisa? Comecar a viver a minha vida como outra pessoa? Trabalhar normalmente, garantir meu sustento, ajudar minha familia, como eu sempre fiz? A outra opcao era ser clandestina. [...] Por isso que eu disse antes, que eu fiz a unica coisa que eu podia fazer naquele momento.

E por isso que eu falei da questao do livre-arbitrio: na verdade, naquele momento, em relacao a essas coisas, nao tinha muito o que se fazer. Viajar eu nao podia ... Ninguem se colocava no meu horizonte, eu era uma pessoa tao insignificante no meu lugar, que isso nao era uma opcao para mim. E tambem eu nao me considerava assim tao importante a ponto de achar que fosse acontecer alguma coisa comigo. Embora, eu possa dizer que existe um momento em que eu perdi a inocencia. Na verdade, nada do que eu vou dizer considero importante para ninguem, a nao ser para mim mesma.

Em Pauta--A partir da sua historia de vida, ha uma coincidencia entre o inicio da sua experiencia politica, durante a ditadura--esse pedaco da historia que voce chama "a vida que voce nao se reconhece mais"--e o seu ingresso na universidade, em 1964? Ou nao?

Maria Helena--Nao, comeca antes.

Em Pauta--Entao conta um pouco dessa historia.

Da origem camponesa a participacao no Movimento de Educacao de Base (MEB)--Pre 1964

Maria Helena--Na verdade, a questao e a seguinte: eu sou do interior, filha de uma familia que empobreceu...

Em Pauta--Interior de qual lugar?

Maria Helena--Interior de Pernambuco. Eu gostava muito de ler e lia qualquer coisa que me caisse nas maos. E o que me caia nas maos na epoca, nao tinha nada a ver com a questao social. O "qualquer coisa" era romance. Entao, eu li tudo que era romance que tinha na biblioteca da igreja. Por exemplo, um autor que eu me lembro muito e M. Delly. Eu lembro bem daquela biblioteca [...]. Eu era uma menina de familia empobrecida e estava em um momento de comecar ou nao a estudar. Foi o esforco da minha mae que fez com que a gente fosse estudar. Depois da decada de 50, a partir de Juscelino Kubistchek, e que voce tem uma perspectiva de que so a educacao da mobilidade, que a educacao permite ascender socialmente. E como a gente era empobrecido, o ideal era voce nao ficar naquilo e tentar ascender socialmente pela educacao.

Em Pauta--A sua familia era de origem camponesa?

Maria Helena--O meu bisavo era coronel, entao ele tinha muitas posses, era muito rico, teve ate escravos ... Mas a medida em que as condicoes estruturais mudaram e as pessoas nao souberam ou nao puderam acompanhar, meu avo foi empobrecendo e quando chegou no meu pai, a familia ja estava pobre quando ele casou com a minha mae. Minha mae tambem e filha de fazendeiro. Naquele tempo as pessoas casavam por aproximacao. Como meu avo dizia, "nao e para casar com um trabalhador". Entao, tentava-se aproximar as familias para que os filhos se casassem. Mas voltando a minha geracao, a minha mae queria levar a gente para estudar. Mas quando chego na cidade, na verdade, nao tenho condicao de entrar no colegio, que era um colegio pago, de freiras.

Em Pauta--A cidade ja e Recife?

Maria Helena--Nao. Essa cidade se chama Pesqueira e fica no interior de Pernambuco. A minha mae foi embora para Pesqueira sozinha, colocar a gente para estudar nessa cidade porque era la que tinha colegio. O colegio era de freiras, para as meninas, e de padres, para os meninos. Mas eu nao tinha condicao de ir para esse colegio porque era pago. Eu desejava ardentemente estudar, mas nao podia. E enquanto eu nao podia, apareceu um trabalho la em Pesqueira, na loja Casa Carlos Jose Araujo. Eu fui muito a contragosto trabalhar, esta entendendo? Mas quando eu cheguei la, eu me sai tao bem no trabalho ...

Em Pauta--Era casa de que?

Maria Helena--Loja de tecido e ai eu fui trabalhar na parte do escritorio. A gente trabalhava em um tempo ainda em que se somavam os taloes que vinham e eu era responsavel por dar o resultado final do lucro de cada dia. E eu fazia aquilo com uma facilidade tao grande, que precisava de mais trabalho para mim. E eles me davam sempre mais trabalho ... Mas eu queria mesmo era ir para o colegio, eu queria estudar. Tenho uma irma que, nessa epoca, ja estava no colegio, porque ela era a mais velha e tinha ganhado uma bolsa. Como nao podiamos pagar para estudar, so pode ir ela. Uma vez, indo ao colegio da minha irma, as freiras notaram meu desejo de estudar e a minha impossibilidade. Entao, elas me ofereceram uma bolsa de estudo. Foi quando eu larguei a loja. Mas eu precisava daquele salario, precisava para mim e para ajudar em casa. Eu tentei ainda ficar trabalhado e estudando, mas nao podia, porque a loja nao permitia, eram oito horas de trabalho no comercio. Entao minha mae falou: "vamos ver, ja que voce ganhou a bolsa, a gente vai ter que passar sem isso. [...] Voce vai!" Eu ainda me lembro do dia em que as aulas tinham comecado e como minha mae fez a minha roupa, minha farda, que era toda de preguinhas. Eu arrumei aquela farda cheia de preguinhas e coloquei em baixo do colchao da cama. O dia mais feliz da minha vida foi quando vesti essa farda para ir ao colegio.

Em Pauta--Qual era a sua idade?

Maria Helena--Eu devia ter uns 17, 18 anos, mais ou menos, acho. Era para eu ter entrado antes, porque terminei meu primario com oito anos de idade. Fiquei repetindo, porque nao tinha nada para fazer. Quando entrei no colegio, era um colegio para curso normal, para ser professora. La eu fiz o ginasio. Eu vivia estudando e dava aula para outros alunos que tinham dificuldade, para ganhar algum dinheirinho. (risos) Em Pauta--Ja era professora desde aquela epoca? (risos) Maria Helena--Depois teve a passagem para o pedagogico, porque o sistema era assim: ginasio e pedagogico. Na passagem para o pedagogico, eu sabia que tinha uma regra que estabelecia que quem ganhasse o primeiro lugar nos tres anos de pedagogico, tinha o direito a uma bolsa de professor, uma bolsa nao, ganhava-se uma cadeira, a gente chamava assim. Ganhava uma cadeira de professora. Porque para arrumar uma cadeira nao bastava ser professora. Porque isso dependia da influencia politica que voce tinha, quem era o deputado em que voce votava, quem era quem. Quando descobri que para ganhar a cadeira sem precisar dessas influencias, precisava tirar o primeiro lugar, me "aferrei" aos estudos. E comecei ... sempre tirando primeiro lugar ao longo dos meus tres anos no curso de professora.

Em Pauta--Foi a partir de Pesqueira que voce prestou vestibular e foi para Recife?

Maria Helena--Eu vou chegar la. Eu contei a historia do pedagogico e da bolsa. Mas durante esse tempo, dentro dessa escola, eu era muito ativa e membro forte da Juventude Estudantil Catolica (JEC). Tudo que era palavra de ordem da Juventude Estudantil Catolica a gente fazia. A JEC tinha um projeto chamado "clube do livro", em que se divulgava livros nos colegios de outras cidades da periferia. Ao mesmo tempo, essa era uma epoca efervescente. Voce tinha na cidade de Pesqueira, as chamadas Ligas Camponesas. No interior do campo havia um trabalho muito grande com as Ligas Camponesas e, ligado com esse trabalho, tambem o Movimento da Educacao de Base. Isso la em Pesqueira.

Em Pauta--Isso era mais ou menos em que epoca? Qual era a sua idade?

Maria Helena--Devia ser em 1960.

Em Pauta--Era um momento de transicao, nao e?

Maria Helena--E. Era um momento bem forte de transicao. Entao, eu era da JEC e participava desse clube, onde se...

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