Meister Eckhart e Marguerite Porète: dois caminhos de negação radical sob um mesmo traço distintivo
Autor | Matteo Raschietti |
Cargo | Doutor em Filosofia pela Universidade de Campinas (UNICAMP), teólogo e filósofo, área de especialização: Idade Média - Meister Eckhart |
Páginas | 291-301 |
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Matteo Raschietti1
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suficientes para reconocer que sus temas centrales son los mismos de Marguerite. Con efecto, la relación paradigmática con Dios en ambos autores, se hace un retorno a un fondo del Ser que Eckhart llama “Gottheit” y Marguerite “Néant”.
Eckhart. Porète. Alma. Divinidad. Nada
No século XII, particularmente na França, Alemanha e nos Países Baixos, havia um grande número de mulheres sozinhas, pertencentes à classe social médiobaixa, que não podiam casarse por escassez de homens, dizimados pelas cruzadas ou por guerras locais, e que não eram aceitas pelos poucos conventos femininos existentes na época (mais interessados em acolher jovens mulheres ricas e nobres). A única alternativa para essas mulheres (que passaram a se chamar de beguinas), era viver sozinhas nas periferias das cidades, rezando e ocupandose com trabalhos manuais ou dedicandose ao ensino.
A etimologia do nome beguina é obscura: a hipótese mais provável é que tenha origem na palavra flamenga beghen, que significa rezar. Segundo o Dicionário Italiano de Mística (1998),
o termo francês begin[e], originalmente utilizado no Brabante Meridional, nos territórios de Liége e nas regiões renanas, pode ser uma corrupção popular de Alibigenses, ou deriva do verbo anglosaxônico beggen (pregar, mendigar) ou ainda, mais provavelmente, do antigo francês bege (tipo de lã grossa ou não tingida) com o sufixo inus, ou seja beg(u)inus, pessoa que vestia o hábito dos hereges (cátaros ou lulardos)2.
O fenômeno das beguinas (mulieres religiosae beginae, begginae)”, segundo Nachman Falbel, foi consequência da reforma gregoriana e da tendência à vida apostólica, inicialmente promovido pelos pregadores ortodoxos e depois também pelos hereges. As mulheres que optavam por esse novo tipo de vida, moravam em um lugar comum sob a direção de uma mestra, não emitiam os votos propriamente ditos, e se dedicavam à oração, ao trabalho manual, à assistência dos enfermos, ao cuidado dos cadáveres e à educação das crianças. De acordo com uma lenda do século XV, a corporação teria sido fundada, escreve Falbel, “por Santa Bega (+ 694), filha de Pepino, o Velho, ou pelo pregador penitencial Laberto, le bégue (o gago) ou le bèguin, em Liége, em
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1177. Outros pensam que o nome deriva de albigenses, ou talvez do hábito beige ( = bege, lã em seu estado natural) das mulheres”3.
Houve também a versão masculina das beguinas, denominada (com uma conotação negativa em sentido herético) begardos, que surgiram por volta de 1220 nos Países Baixos. Atuavam na assistência aos enfermos e no sepultamento dos mortos, e espalharamse tão extensamente quanto as beguinas. Logo se desviaram de suas tendências iniciais, tornandose suspeitos de heresia, assim que desapareceram antes do século XVI.
No século XIII o número dos conventos de beguinas cresceu rápidamente em toda Europa, principalmente nas áreas urbanas, e ainda hoje existem 11 comunidades na Bélgica e 2 na Holanda. Apesar de não apresentarem nenhum sinal de heresia, as beguinas foram condenadas pelo IV Concílio de Latrão (1215), mas logo em seguida (1216) o papa Honório III aceitouas verbalmente, até que o papa Gregório IX (1227-1241) aprovouas com a bula Gloriam virginalem em 1233. Não obstante a aprovação papal, nos anos sucessivos houve uma série ininterrupta de condenações contra as beguinas: nos sínodos de Fritzlar (1259) e Mainz (1261), no Concílio de Lion (1274)4, nos sínodos de Eichstätt (1282) e Bérziers (1299), e, por fim, no Concílio de Vienne (1311-12), quando foram definitivamente condenadas como hereges.
No dia 1º de junho de 1310, na Place de Grève em Paris, foi queimada na fogueira a beguina Marguerite Porète, junto ao seu livro Le miroir des simples âmes et anéanties (O espelho das almas simples e aniquiladas), que influenciou decisivamente o pensamento de Meister Eckhart5.
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No final do século XIII o teólogo escolástico Henrique de Gand6 debatia a seguinte questão: “Pode uma mulher ser doutor em teologia?”7. Como bom escolástico, ele negou que uma mulher pudesse ser ex officio doutora em teologia por ela não possuir as quatro características públicas do status de doutor: constância, eficácia, autoridade e efeito. Apesar disso,
falando a respeito de ensinar ex benefício e do ponto de vista do fervor da caridade, é lícito para uma mulher ensinar, assim como para qualquer outro, se ela tiver uma sã doutrina, em particular, em silêncio, não em público e diante da igreja [...] isto principalmente diante de mulheres ou moças: mas não diante dos homens, seja porque – como se diz – seu discurso poderia inflamar os homens para o desejo, ou porque para eles é torpe e inapropriado, como Jerônimo disse a Paulina8.
A preocupação de Henrique de Gand é reveladora de um fenômeno peculiar do século XIII, isto é, a emergência das mulheres na história do pensamento cristão e a consequente reivindicação de espaço no âmbito eclesial. Os comentários de Henrique provam que os teólogos parisienses tinham consciência do novo papel que as mulheres estavam assumindo na vida intelectual da Cristandade. Anos depois, no dia 1º de junho de 1310, uma mulher de nome Marguerite Porète era queimada publicamente como herege reincidente, porque não só não observou as limitações relativas ao ensino das mulheres, mas porque fora acusada de desvios doutrinais. Paradoxalmente, o livro dessa
Eckhart, ocorrida um ano antes). O destino singular pelo qual Eckhart passou da fama e do prestígio de uma posição nas altas esferas da ordem à infâmia de um processo por heresia, único em seu gênero contra um representante tão importante dos Dominicanos, se repercutiu também na história da interpretação, na qual se observam as posições mais controversas, do descrédito e da censura até a exaltação indiscriminada. O peso da condenação papal influiu na circulação de suas obras, que chegaram até os dias de hoje de maneira fragmentada; apesar disso, elas alimentaram uma tradição submersa e eficaz que perpassou os séculos e, desde o começo, se estendeu além das fronteiras da área alemã.
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mulher, O Espelho das Almas Simples e Aniquiladas, teve uma influência profunda em um dos teólogos mais conhecidos da época, o dominicano Meister Eckhart. O livro continuou a ser lido na baixa Idade Média nas versões em francês, latim, inglês e italiano. Hoje em dia, ele é cada vez mais reconhecido como um dos trabalhos mais profundos, embora controverso, do misticismo especulativo da tradição cristã.
Marguerite Porète nasceu por volta de 1250-1260 na região do Hainaut, provavelmente na capital Valenciennes, na época diocese de Cambrai (noroeste da França). O bispo dessa diocese, Guido II de Colmien, durante os anos do seu governo (1296-1306), condenou Marguerite e fez queimar publicamente na cidade seu livro Le miroir des âlmes simples et anéanties. Apesar disso a beguina, animada por um zelo missionário sem pares, continuou a espalhar no meio do povo seu livro e o ensinamento nele contido, respaldada pela perícia positiva de três teólogos, um franciscano, um cisterciense e um filósofo escolástico.
Em 1307, Marguerite foi conduzida diante do dominicano Guilherme Humbert de Paris - inquisitor hereticae pravitatis in regno Franciae auctoritate...
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