Marginalidade Jurídica das Migrações Internacionais na Prática dos Direitos Humanos

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas128-144

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1. Introdução

O fenômeno migratório é elemento sociológico fundamental do desenho da integração internacional, do desenho demográfico e da formação da sociedade produtiva de todos os países. A identificação das suas causas e consequências sociais, políticas e econômicas nas sociedades emissoras e receptoras, bem como a análise a sua regulamentação jurídica internacional, necessariamente eleva-o ao debate humanitário e impõe celeumas, a partir do paradigma do regime internacional de direitos humanos, para a própria estrutura da teoria do Estado.

Isso porque o papel social do estrangeiro nas suas relações com o Estado receptor — e com a sociedade receptora — o torna destinatário de políticas públicas nas quais não pode intervir1; engrenagem de produção econômica da qual torna-se importante fator de equilí-

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brio ou desequilíbrio2; sujeito de direitos sonegados pelo Estado e de dignidade sonegada pela sociedade3.

O estudo do fenômeno migratório passa, nesse influxo, pelo estudo da democracia e da cidadania, da economia, dos direitos humanos — dentre eles o direito do trabalho e da seguridade social — e da xenofobia, entre outros.

A regulamentação da migração internacional, aliada à promoção dos direitos humanos, trabalhistas e previdenciários dos estrangeiros nos países receptores, tem a aptidão de reorganizar os fluxos migratórios e tutelar as populações migrantes, influindo diretamente no seu desenvolvimento econômico e social, a partir da pauta integrada do regime internacional de direitos humanos e de um planejamento estrutural macroeconômico que permita uma integração em que circulem adequadamente não apenas as mercadorias, mas também as pessoas. As preocupações da comunidade internacional, entretanto, inserem o tema nas discussões relativas à segurança pública, ao direito criminal e ao terrorismo4.

Este trabalho busca pontuar tal cenário e revisar a regulamentação internacional — adotando como marco as convenções da Organização Internacional do Trabalho, sob perspectiva sociológica e jurídica, para encontrar a celeuma acima descrita.

2. O estrangeiro imigrante

O estrangeiro é o estranho por excelência. Estranho, exterior, está fora, além, à margem por natureza. É sujeito marginal propriamente dito. É o Outro na ontologia, o distante, aquele com quem, de início, não há relação de identidade ou de proximidade.

O estrangeiro é o outro na paranoia dos nacionalismos. O inimigo imposto pela política bélica, o bárbaro estigmatizado pela história positivista europeia, que enaltece, problematiza e subjetiva as vidas dos homens políticos greco-romanos (com ricas narrações dos caracteres e fatos das vidas privadas) e reifica, não raro superficialmente, os grupos, ora de mouros, ora de germanos, outras oras outros tantos, descrevendo os riscos que ofereciam à cidade, às plantações, à paz de espírito dos cidadãos.

Fruto da mesma herança dos antigos impérios, do colonialismo medieval, das inúmeras faces da subserviência cultural, com imposições — na conformação historiosociológica das relações de poder e dominação territorialista, com causas econômicas e consequências sociais determinantes para a formação das sociedades — de padrões estéticos de todas as ordens, o estrangeiro também tem a face de dominador marginalizante, dada a auto-opressão e a autoexclusão promovida pelo próprio colonizado, que não raro se põe como adorador de espelhos e especiarias — o indígena — a todos os hábitos incutidos nas relações sociais — eu, tu, ele, nós todos. Basta o atributo internacional para distinção do valor agregado do produto ou do serviço. O produto ou serviço nacional, por sua vez, mesmo quando típico da cultura e da tradição internas ‘vale mais’ se oferecido sob molde de padrão internacional.

Sob a perspectiva do trabalho, a herança do colonialismo escravagista fala alto nesse contexto. A invasão cultural nas regiões de economia periférica mantém a essência de dominação econômica,

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e por necessidade, criam-se estruturas de atendimento ao turista, por exemplo, que condicionam os nacionais ao atendimento quase beatificante dos estrangeiros, Senhores transitórios — pelo período da estadia — daquela gente e daquela terra, com larga reprodução das microrrelações de sujeição pessoal e, obviamente, servilismo laboral.

Nessa esteira, impõe-se o aprendizado dos idiomas estrangeiros, para utilização aqui, lá ou acolá, sempre em detrimento da língua marginal (sob a perspectiva da ordem internacional hegemônica em determinado lugar e momento histórico, desde o latim até o inglês, na história ocidental eurocêntrica), ainda que dentro do próprio território. Sob efeito do servilismo, o marginalizado é estrangeiro excluído dentro do território do próprio Estado de que é nacional, se não estiver apto a comunicar-se em língua estrangeira, até mesmo, via geral, quanto a prática da língua estrangeira é absolutamente estranha e desnecessária ao exercício da atividade profissional. É um movimento colonizante depois do outro: no Brasil, se antes impôs-se o português a todos, fossem índios ou navegantes holandeses, espanhóis ou franceses (também estigmatizados na história oficial como corsários e invasores), hoje vivemos a viva imposição da língua inglesa, presente em cada vez mais signos linguísticos nas relações do homem com a cidade e com os outros homens. A internacionalização é tida como desenvolvimento, enquanto as culturas indígenas latino-americanas são periféricas dentro da própria América Latina.

Nesse contexto, a depender de um sem-número de condicionantes, que determinarão seu lugar nas relações com outro Estado e com seus nacionais, o estrangeiro pode figurar como oprimido ou opressor. Como marginalizado ou como marginalizante. Ocupa-nos, no propósito deste trabalho, identificar e pontuar situações de marginalização jurídica que acarretem, de fato, opressão moral ou indignidade estrutural do estrangeiro.

Tais situações se sobrepõem inevitavelmente no contexto da migração.

A história da migração é a história da escassez. Desde as secas, passando pelas guerras e alcançando os ‘sonhos americanos’ de prosperidade no consumo, a motivação das migrações é a busca pela sobrevivência. Pessoas com história, memória, família, plenas de significantes constituídos nos locais de origem, levam-se a deslocar seus domicílios e suas relações intersubjetivas para lugares com os quais não se identificam, e nos quais não se constituem como sujeitos plenos, com fim geralmente exclusivo de ocupar lugar na divisão social do trabalho e garantir subsistência. Assim iniciaram, no Brasil, as histórias das populações africanas e descendentes escravizados nos séculos XV a XXI (até hoje) e japoneses, italianos, alemães e poloneses no final do século XIX e início do século XX (e novamente agora, no início do século XXI, com a nova crise europeia, que força até a imigração de brasileiros ex-emigrantes5); de coreanos, bolivianos e peruanos desde meados do século XX e até hoje, entre outros. Para cá vieram e trouxeram todas as suas expressões culturais locais — que possivelmente mantenham o desejo ou ao menos o ideal inalcançável de lá estarem ou para lá voltarem — em busca, majoritariamente, de trabalho.

Isso independente das condições de inserção social, de acesso à cidadania e de inclusão jurídica, via de regra inexistentes em razão do atributo de estrangeiro e na inexistência de educação multiculturalista de ambientação social e fomento da interrelação dos estrangeiros com os nacionais,

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o que cria um intransponível abismo entre eles. Cria a marginalização propriamente dita, sob diversas faces esterilizantes das possibilidades de integração social. Somente os bem-sucedidos, por seu lastro patrimonial— a partir dos signos de consumo, transitam entre os nacionais e encontram receptividade. Entretanto, nem estes, quando muçulmanos, judeus, negros, amarelos ou diferentes demais da minoria dominante, ainda que sejam parecidos com a maioria (seja qual for o atributo a depender do lugar social racista em que transitem) deixam de sofrer segregação. Em toda a Europa, nos Estados Unidos e, vivamente, no Brasil, a xenofobia é regra — catalisada pela crise econômica e pela competição pelos mesmos postos de trabalho entre nacionais e estrangeiros — mesmo em ambientes pretensamente cosmopolitas6.

A exclusão jurídica opera em todos os níveis. Os estrangeiros marginalizados não têm direitos contra o Estado receptor, não têm cultura jurídica de oposição de direitos contra seus empregadores, ainda quando reduzidos a condições análogas às de escravos, dada a profunda gratidão que têm para com eles em viabilizar o novo modo de vida. O trabalho, absolutamente informal, não garante proteção previdenciária, e a vulnerabilidade diante das contingências da doença, da velhice ou da morte só é parcialmente atenuada pelo profundo sentido de solidariedade que as comunidades de estrangeiros mantêm internamente — quando mantêm. A rotina é de sobrejornada, exploração do trabalho infantil, ambientes de trabalho hostis e/ou insalubres e pouca ou nenhuma inserção social além-trabalho.

A existência de estrangeiros inseridos socialmente, bem-sucedidos economicamente e a notoriedade que um exemplo ou outro podem ganhar na memória próxima do leitor podem gerar raciocínios indutivos generalizantes, na ética meritocrática da iniciativa. O que os distingue da maioria de estrangeiros — que é de fato marginalizada jurídica e socialmente — são...

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