Marcos normativos para a preservação da integridade na pesquisa

Autor1. Maria de Fátima Freire de Sá - 2. Diogo Luna Moureira
Cargo1. Doutora em Direito pela UFMG; Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Civil da PUC Minas; Professora dos cursos de Graduação, Especialização, Mestrado e Doutorado em Direito na PUC Minas. - 2. Mestrando em Direito Privado pela PUC Minas.
Páginas75-99

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Introdução

No século XX, os progressos das biotecnologias colocaram a vida biológica no foco das problemáticas decorrentes da aplicabilidade destes novos conhecimentos tecnológicos. Os avanços das pesquisas científicas têm aguçado cada vez mais assuntos que outrora não ocupavam o centro das nossas atenções, eis que se tratavam de meras especulações científicas.

Os avanços tecnológicos aplicados às ciências da vida revelam que entre os dados concretos da realidade e as pretensões científicas existe um imenso vazio de situações possíveis e obscuras. Tal vazio instiga a comunidade política, científica e jurídica a questionar e apresentar respostas possíveis às situações concretas que se revelam no cenário científico, bem como às situações que, em princípio abstratas, podem, a qualquer momento, se tornar realidade.

Fato é que, atualmente, a criação e manipulação do ser humano que antes eram atribuídas unicamente às forças divinas ou da natureza passaram a ser objeto de investigação e intervenção do próprio ser humano, o que fez com que a criação se tornasse, também, fruto da criatura.

Mostrando-se preocupado com as conseqüências advindas dos progressos científicos, notadamente no que se refere às incursões científicas na espécie humana, Jürgen Habermas (2004) constrói argumentos preventivos para limitar as possibilidades das biotecnologias, de forma que não se criem perturbações diante das situações fáticas, mas, sim, princípios para recepcionar situações possíveis:

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Essa máxima não é adequada para a dramatização. Enquanto ponderarmos a tempo sobre os limites mais dramáticos, que talvez possam ser ultrapassados depois de amanhã, podemos lidar de modo mais sereno com os problemas atuais e reconhecer o quanto antes que, muitas vezes, as reações alarmistas não são fáceis de ser derrubadas com razões morais imperativas. (HABERMAS, 2004, p. 28).

Hoje, as problemáticas decorrentes da incursão das tecnologias à vida biológica não se restringem à vida dos seres humanos, mas se alargam a quaisquer manifestações de seres que expressam esta vitalidade, como é o caso dos animais. A isto se tem dado atenção cada vez mais, pois se um dia o homem foi o centro do universo (antropocentrismo), hoje, em decorrência destas novas tecnologias, é a vida biológica que tem ocupado o seu lugar (biocentrismo).

Todavia, no presente artigo abordaremos, tão somente, as problemáticas decorrentes da aplicabilidade destas tecnologias à vida biológica dos seres humanos e as possibilidades daí decorrentes, o que, por si só, já apresenta um severo esforço.

A credibilidade que hoje é dada à ciência é fruto das muitas respostas por ela apresentadas, a partir de argumentos racionais, devidamente comprovados nos limites do seu alcance. Entretanto, tal credibilidade não autoriza que as respostas e as possibilidades, buscadas e dadas pela ciência, sejam impostas como verdades absolutas. Ora, é certo que se um dia a ciência foi capaz de afirmar que o sol foi o centro do universo, hoje, discute-se se algum centro há. E também, se o foco da grande parte das ciências é a pessoa humana, é certo que não estamos lidando com materiais sólidos, mas algo mutável, que é capaz de pensar, agir, escolher e, o mais importante, se fazer, independentemente das respostas científicas que estejam ao seu alcance.

Destarte, a maior problemática enfrentada pela ciência moderna está na colisão entre liberdade da pesquisa versus o resguardo da integridade da vida e da pessoa humana. E na história, vários são os fatos que revelaram esta tensão.

Nos anos de 1939-1945, a história da humanidade ficou marcada pelas atrocidades cometidas nos campos de concentração na Alemanha contra ciganos, judeus, poloneses e russos. A utilização de seres humanos em experimentos científicos por meio da força e coação, reduzia-os à categoria de coisas, posto serem tratados como cobaias nos experimentos de eugenistas alemães.

Em 1946, o Tribunal de Nuremberg julgou 23 pessoas acusadas de crimes de guerra, sendo 20 médicos que efetivavam os repugnantes experimentos com seres humanos nos campos de concentração nazistas. Do julgamento, em 1947, foiPage 77publicado o Código de Nuremberg, primeira determinação internacional mencionando os aspectos éticos que envolviam as pesquisas com seres humanos.

O Código de Nuremberg estabeleceu como marco da integridade das pesquisas científicas envolvendo seres humanos, o consentimento voluntário, que deveria ser resguardado em sua plenitude pelo pesquisador, sob pena de assumir as responsabilidades decorrentes da sua desídia. Toda forma de repressão utilizada para compelir a pessoa a se submeter ao experimento (o que foi feito no nazismo) deveria ser reprimida uma vez que, para se aderirem às pesquisas, as pessoas deveriam ser, necessariamente, capazes de expressar o seu consentimento e terem conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem alguma posição.

A busca pelo reconhecimento da pessoa enquanto ser autônomo e auto-consciente marcou todo o teor do Código de Nuremberg que, a todo momento, buscou resguardar a integridade do sujeito submetido à pesquisa, dando-lhe, inclusive, a liberdade de se retirar do experimento científico.

Fora do cenário da guerra e das atrocidades explícitas do movimento nazista, de 1932 a 1972, o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos realizou pesquisa na cidade de Macon, no Estado do Alabama, através da qual se pretendia analisar a evolução natural da sífilis, sem qualquer tratamento. Os voluntários, todos negros e muito pobres, não sabiam que eram portadores da doença e nem que estavam participando de um experimento científico. Tal fato só veio a público em 1972, quando Jean Séller publicou na primeira página do New York Times o escândalo que ficou conhecido como “caso Tuskegee”.

Embora começado em 1932, o Código de Nuremberg já havia sido publicado no decorrer da escandalosa pesquisa mas, ainda assim, a mesma foi levada adiante desrespeitando, igualmente, a autonomia e a autoconsciência dos sujeitos pesquisados.

Antes, porém, do caso Tuskegee vir a público, em 1966, Henry Beecher, professor de anestesia de Harvard, já havia publicado artigo demonstrando estatisticamente que 12% dos artigos médicos publicados em uma importante revista científica aplicava métodos contrários à ética (LOLAS, 2001, p. 17-24), fato que pressionava a necessidade de se estabelecer regramentos éticos e jurídicos capazes de impor limites à liberdade das pesquisas científicas.

E com o propósito de se resolver vários entraves éticos decorrentes destas pesquisas foram criados os Conselhos de Ética em Pesquisa cujo escopo era a preservação de princípios éticos aplicados às ciências da vida. Nos Estados Unidos, por exemplo, após a publicidade dada ao “caso Tuskegee”, o Congresso aprovou a National Reserch Acta determinando a criação da National Commission for thePage 78Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research que, de 1974 a 1978, publicou o Informe Belmont, em dezessete volumes.

A situação parecia confortável com as novas medidas adotadas até que o desenvolvimento das pesquisas genéticas em seres humanos tornou mais conturbada as relações pesquisador/pesquisa/objeto pesquisado, uma vez que pesquisas genéticas podem acarretar o fortalecimento do pensamento higienista, banindo os seres “inaptos” para que as possibilidades de permanência da espécie não sejam ameaçadas.

Os avanços da Bioquímica nos anos 50 aguçaram os estudos químicos dos processos biológicos que ocorrem nos seres vivos, notadamente no que diz respeito à atenção científica dispensada aos ácidos nucléicos. Em idos dos anos 60, a sequência de nucleotídeos dos ácidos nucléicos (DNA e RNA) foi desvendada, fato que deflagrou os avanços dos estudos acerca da genética molecular. Em virtude destes impulsos científicos proporcionados pelas biotecnologias, nos anos 70 surgem novas áreas de estudo da Bioquímica, dentre as quais se destaca a Biologia Molecular quando, então, se torna possível a manipulação do DNA humano (GRISOLÍA, 2002, p. 18).

Os progressos científicos proporcionados pela Biologia Molecular foram condensados no Projeto Genoma Humano, iniciado em meados dos anos 80 nos Estados Unidos e, posteriormente, acompanhado por vários outros países, a pretensão científica no mapeamento dos genes da espécie humana, bem como a identificação dos nucleotídeos que os compõem, a fim de proporcionar o desenvolvimento de novas pesquisas biológicas.

Dentre estas novas pesquisas, destacaram-se os avanços da Engenharia Genética, com a possibilidade da identificação da pessoa através de dados genéticos capaz de defini-la em um nível prévio à identidade pessoal. Além do mais, tornou-se possível a realização de aconselhamentos genéticos (pré-conceptivo, pré-implantatório, pré-natal ou pós-natal), por meio dos quais os consulentes e seus familiares podem obter informações acerca do desenvolvimento de eventuais enfermidades de caráter hereditário, bem como transmiti-las aos seus descendentes, podendo, a partir de tais informações, obter meios para evitá-las ou aliviá-las. Para além disto, a ciência cogita a clonagem do ser humano, tornando cada vez mais intrigante e desafiador o descortinar da ciência.

Inegavelmente, a cada dia que passa, os avanços científicos têm nos apresentado situações nunca dantes imaginadas. O sonho da longevidade e da definição da descendência tem se tornado realidade e a isto todos ficamos enaltecidos e ansiosos para compartilhar as novas técnicas. Ocorre, porém, que, aliado aos anseios científicos proporcionados pelas novas tecnologias aplicadas àPage 79vida humana, vários problemas emanam...

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