Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5, estatísticas e ciências humanas: inflexões sobre normalizações e normatizações

AutorTito Sena
CargoDoutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas96-117
1807-1384.2014v11n2p96
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não
Adaptada.
MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS, DSM 5
ESTATÍSTICAS E CIÊNCIAS HUMANAS: INFLEXÕES SOBRE NORMALIZAÇÕES E
NORMATIZAÇÕES
Tito Sena
1
Resumo
A edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5, em
2013, mantém acesa a polêmica sobre diagnósticos psiquiátricos. O campo da
psiquiatria, historicamente em disputa com a psicologia e a psicanálise (quanto à
forma de avaliação e terapêutica), continua a sustentar uma prática enquadradora
classificatória (taxionômica), fundamentada em características e critérios
diagnósticos de perturbações ou transtornos verificados, em sua maioria,
empiricamente. O uso das ferramentas estatísticas nas ciências humanas é
questionável, e o que se pretende neste artigo é apontar o disfarce de critérios
quantitativos em critérios qualitativos e, por extensão, da prática discursiva comum
de confundir descrições com apreciações, estas últimas com julgamentos valorativos
e normativos. Fecha-se um círculo: as frequências (estatísticas) definem as
normalidades (axiológicas) e estas se sustentam nas freqüências. Neste âmbito, as
elaborações de Canguilhem, Ewald, Foucault e Goffman foram imprescindíveis para
a articulação das argumentações teóricas críticas.
Palavras-chave: DSM-5. Estatística. Ciências Humanas. Normalização.
Normatização.
1 INTRODUÇÃO
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM, em sua
quinta edição, foi publicado em maio de 2013 (versão em português 2014). O guia
representa a base para definição de doenças psíquicas, referência para a prática
clínica, e segundo seus autores, contém informações úteis para todos os
profissionais ligados a saúde mental, “incluindo psiquiatras, outros médicos,
psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, consultores, especialistas das áreas
1 Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor do Centro de
Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina, Florinaópolis, SC,
Brasil. E-mail: titosena06@gmail.com
97
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.11, n.2, p.96-117, Jul-Dez. 2014
forense e legal, terapeutas ocupacionais e de reabilitação e outros profissionais da
área da saúde” (DSM-5, 2014: p.xii)
O título do manual nos fornece elementos para algumas problematizações
deste artigo: como aceitar um manual de diagnóstico? Como recorrer à estatística
para legitimar a conduta humana? Como manter o dualismo cartesiano corpo-mente
na forma eufemística de transtorno mental, quando se sabe que na prática os
psiquiatras mantêm a concepção de “doença mental”? Como adotar critérios de
avaliação clínica de sintomas, de caráter predominantemente empírico? Segundo o
DSM-5,
Um transtorno mental é uma síndrome caracterizada por perturbação
clinicamente significativa na cognição, na regulação emocional ou no
comportamento de um indivíduo que reflete uma disfunção nos processos
psicológicos, biológicos ou de desenvolvimento subjacentes ao
funcionamento mental. (DSM-5, 2014; p.20)
A forte ligação dos sistemas de classificação psiquiátrica com as medidas
estatísticas é explicitamente manifestada, valorizada e reconhecida pelos autores do
DSM-5, empreendimento conjunto elaborado por mais de mil consultores, sessenta
entidades profissionais, de trinta e nove países, coordenado pela American
Psychiatric Association
2:
O uso de testes de campo para demonstrar confiabilidade de forma
empírica foi um aprimoramento significativo introduzido no DSM-III. A
elaboração e a estratégia de implementação de Testes de Campo do DSM-
5 representam várias mudanças relativas à abordagem utilizada no DSM-III
e no DSM-IV, particularmente na obtenção de dados sobre a precisão de
estimativas de confiabilidades kappa (uma medida estatística que avalia
o nível de concordância entre avaliadores que corrige para concordâncias
ao acaso devido a taxas de prevalência) no contexto de ambientes
clínicos com níveis elevados de comorbidade diagnóstica. (DSM-5, 2014:
p.07) (grifos meus).
Esta aliança psiquiatria-estatística é antiga. Nos últimos cento e sessenta
anos, o número de descrições de categorias diagnósticas passou de uma
idiotismo/insanidade em 1840, para 300 categorias em 2013 com o DSM-5.
Conforme informação no anterior DSM-IV de 1994, com texto revisado em 2000:
Poder-se-ia considerar como sendo a primeira tentativa de coletar
informações sobre doença mental o registro de uma categoria, a saber, a de
2 A APA, American Psychiatric Association foi fundada em 1844 e reúne hoje mais de 35.000 médicos
psiquiatras, especialistas no diagnóstico e tratamento de doenças mentais. (Fonte:
http://www.psychiatry.org/about-apa--psychiatry)

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