Manipulação do Patrimônio Genético: Uma Análise Constitucional

AutorIvan de Oliveira Silva
Páginas127-159

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8. Manipulação do Patrimônio Genético do País sob a Ótica Constitucional

A manipulação tecnológica do patrimônio genético nacional, pela sua magnitude, reclama a sua análise sob a ótica da Constituição Federal de 1988, que, a partir de então, passou a disciplinar, de maneira bastante rígida, a preservação do material genético brasileiro.

Assim, entendemos que toda e qualquer imersão especulativa em nosso material genético, realizada a partir de pesquisas biotecnológicas, não poderá desconsiderar os princípios da Constituição em vigor.

Isto posto, em nossas considerações abaixo, teremos o cuidado de abordar o assunto em tela sob o enfoque Constitucional.

8. 1 O Patrimônio Genético: Bem de Interesse Comum do Povo

Em primeiro plano, levando-se em conta a existência de uma categoria de bens (os coletivos), que não se encaixam na classificação tradicional, a qual se limitou a distinguir os interesses apenas em público e privado1, doravante demonstraremos que o patrimônio genético representa uma categoria de interesses relacionada às presentes e futuras gerações.

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Com efeito, reza o caput do artigo 225 e o seu inciso II do § 1º que: "Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

(...)

II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético." (...) (grifos acrescentados).

Conforme se verifica na composição do texto legal acima transcrito,opatrimôniogenéticofazpartedomeioambienteque,porsua vez, é elevado à categoria de bem de uso comum do povo e, portanto, está na esfera de interesse de todos.

Nesse sentido, o inciso II, do § 1º, ao tratar de bens de interesse comum do povo, demonstra de maneira cristalina que todo o material genético do país, ao fazer parte do meio ambiente ecologicamente equilibrado, é considerado pelo Legislador Constituinte como bem de uso comum do povo.

Essa diretriz demonstra claramente que os atos destinados à manipulação e pesquisa do material genético nacional estão entre aqueles que, por serem essenciais à sadia qualidade de vida, impõem uma obrigação de preservação que compete tanto ao Estado como à coletividade. Assim, o texto legal impõe "ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

Ora, a tênue exegese do comando Constitucional declara que o patrimônio genético não se encontra entre os interesses públicos ou privados, eis que o legislador o elevou à condição de coletivo quando o classificou como bem de uso comum do povo.

Valendo-se da expressão bem de uso comum do povo, a Constituição de 1988 considerou o patrimônio genético nacional como bem difuso, haja vista a sua indivisibilidade e indeterminabilidade.2

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Ressalte-se, outrossim, que o material genético, em toda a sua expressão, deverá ser mantido íntegro e preservado, incumbência esta imposta ao Estado, como fiscalizador-mor, bem como à coletividade.

8.2. O Patrimônio Genético da Humanidade e a Alteração do Ciclo Comum da Natureza

A relação do homem com o Planeta, desde tempos remotos, provocou severas mudanças deletérias no meio ambiente natural. Iniciou-se com transformações singelas, quando o homem deixou de habitar em moradias simples (cavernas, por exemplo) e passou a construir outras mais vultosas, perpassando por necessidades cada vez maior de utilização dos bens naturais em decorrência da densi-dade demográfica também mais acentuada. O progresso científico nos tempos hodiernos, mediante recursos financeiros apropriados, transformou as habituais mansardas em arranha-céus que ostentam a alta tecnologia da construção civil.

Entretanto, não é demais fazer constar que o homem atual, nos últimos 30 anos, experimentou diversas transformações advindas da tecnologia, que, em vários momentos, lhe trouxe mais conforto. Porém, não podemos desconsiderar que o propagado avanço provocou um severo impacto no meio ambiente e ainda afastou milhares de pessoas das necessidades básicas de bem-estar, de modo que, nem sempre, a tecnologia de ponta está acessível a todos.

Em outro foco da corrida tecnológica, a humanidade, por inter-médio de cientistas das mais variadas culturas e épocas, preserva uma prática recorrente voltada a questionar o ciclo vital da vida ou, até mesmo, a característica original das espécies espalhadas pelo globo.

Perante tais anseios, carecia ao direito criar um conjunto de normas voltadas à imposição de limites e regras mínimas de garantia à preservação do patrimônio genético do país.

É certo que transformações referidas se encontram diretamente relacionadas aos avanços das ciências e, no que diz respeito à área

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médica, da biociência. Sob tal perspectiva, discutiremos abaixo as conseqüências jurídicas advindas do progresso das ciências que tem por objeto a especulação do patrimônio genético da humanidade.

Nesse contexto, diante das possibilidades de alteração do material genético do país, a CF/88 prescreve que compete ao Poder Público preservá-lo, embora não afaste essa titularidade do cidadão. Dessa forma, conforme o inciso II, parágrafo único do artigo 225 da Lei Maior, o Poder Público deverá criar políticas efetivas com o propósito de "preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético".

Como se observa, a Constituição não objetiva impedir a alteração artificial do ciclo natural da vida, mas, em sentido oposto, impõe ao Estado o dever de fiscalização das entidades científicas voltadas à pesquisa e manipulação do material genético.

Nos termos da Constituição Federal, a natureza poderá ser alterada desde que seja garantida a preservação do patrimônio genético do país. Vale dizer, as pesquisas com o material genético, em solo nacional, poderão ocorrer desde que o Estado tome todas as cautelas para a garantia da integridade desse bem de uso comum do povo, esta é a direção Constitucional.

8.2.1. Manipulação do Patrimônio Genético e o Estudo Prévio de Impacto Ambiental

A Lei nº 6.938/81, recepcionada pela Constituição Federal em vigor, em seu artigo 9º, III, dispõe que a avaliação de impactos ambientais constitui um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente.

Dessa forma, em matéria atinente à manipulação e pesquisa envolvendoopatrimôniogenético,oEstudoPréviodeImpactoAmbiental,previsto no inciso IV, do § 1º, do artigo 225 da Constituição Federal, e a avaliação de impactos ambientais, mencionadas no artigo 9º, III da Lei nº 6.938/81, convergem em um mesmo instrumento voltado à preservação do meio ambiente diante das atividades empreendedoras

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consideradas de potencial risco à sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações.

Destarte, o Legislador de 1988 não só ratifica a pertinência da avaliaçãoderiscocomoverdadeiroinstrumentodaPolíticaNacional do Meio Ambiente, mas também eleva esta providência a uma prática de índole constitucional voltada à garantia do direito à sadia qualidade de vida previsto no caput do artigo 225. Portanto, o Estudo Prévio de Impacto Ambiental, e o seu respectivo Relatório, tem o condão de proporcionar, aos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, o direito a usufruir do meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida.

Com efeito, nos termos da Constituição Federal, a avaliação de Impacto Ambiental será efetivada por meio do Estudo Prévio de Impacto Ambiental, sempre que o empreendimento for identificado como potencialmente causador de significativa degradação ao meio ambiente.

Sublinhamos que, conforme orientação do Texto Constitucional, quando a atividade empreendedora visar à manipulação do patrimônio genético,imprescindívelseráarealizaçãodoEstudoPréviodeImpacto Ambiental, antes mesmo da autorização a ser conferida pela CNTBio, para que, de posse do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), o Poder Público tenha elementos técnicos para analisar o pedido de autorização requerido pelo empreendedor.

8.3. A Clonagem Humana: o Segredo da Vida

A expectativa da criação encanta o homem e, em especial, os profissionais da área médica, que, de tanto trabalharem com a vida e a morte, destinam grande parte de suas atividades à manipulação e observação dos ciclos biológicos dos seres conhecidos. Diante disso, após as evoluções apresentadas no final do século XX, em especial, a clonagem de Dolly, Polly, Gene e Ushi, a perspectiva da clonagem de seres humanos transformou-se em assunto de grande relevância entre os diversos setores da sociedade.

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Explica Tereza Rodrigues Vieira que a clonagem já havia sido objeto de tentativas frustradas em outros animais. Contudo, após um grande número de experiências, cientistas escoceses alcançaram êxito na primeira clonagem de ovelhas. Acrescenta a insigne Mestra que os profissionais liderados por Ian Wilmut:

"Conseguiram através de uma célula especializada gerar um embrião, nascendo assim uma ovelha geneticamente idêntica à dona da mama.

Na experiência, um óvulo não fertilizado foi esvaziado, ou seja, teve seu núcleo retirado. Uma célula foi retirada da região mamária de outra ovelha e implantada no óvulo. Quando a célula mamária foi...

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